terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Marcha à ré

Talladega Nights:
The Ballad of Ricky Bobby 

(farsa,
USA, 2006),
de Adam McKay.


por Paulo Ayres

Bem antes de se notabilizar com o sucesso do streaming que ironiza um fenômeno recente de imbecilização engajada — ou seja, o folhetim Don't Look Up (2021) —, o diretor Adam McKay já comandava sátiras com um olhar atento para a estupidez que estrutura a sociedade estadunidense. Nesse sentido, a farsa Talladega Nights: The Ballad of Ricky Boby chama a atenção pela radiografia da base social que descambaria, anos depois, no “trumpismo”, enquanto voz organizada e institucionalizada da “América retrógrada”. Poucas vezes se viu o espírito sulista “neoconfederado” tão bem refletido num filme como em Talladega Nights — em parte, graças ao tom nonsense sugerindo indiferença e piloto automático na diegese. Além disso, colabora no retrato o objeto temático ser o automobilismo da Nascar; uma espécie de campeonato “mundial” norte-americano que o mundo ignora, ou, ao menos, não tem a devoção cultural como há dentro da maior potência imperialista. Tipo o Super Bowl do futebol jogado com as mãos.

Quem é Ricky Bobby (Will Ferrell)? É mais que um idiota interiorano da Carolina do Norte alçado ao posto de estrela esportiva. O personagem, que reza para o Menino Jesus, representa as comunidades proletárias com valores liberal-conservadores e se torna parte de uma aristocracia white trash. O antagonista, por outro lado, é um estereótipo francês oriundo da Fórmula Um, Jean Girard (Sacha Baron Cohen). O piloto europeu se gaba de três itens franceses exportados: a exploração laboral com emancipação política (démocratie libérale), a ontologia do fetiche da responsabilidade individual (existentialisme) e a sexualidade avançada (ménage à trois). O enredo é, então, sobre um irracionalista bronco versus um irracionalista refinado que lê Albert Camus. Além de bandeiras nacionais de países imperialistas, trata-se de uma disputa dentro do anticapitalismo romântico... que, em certas expressões, pode conviver organicamente, numa boa, com a mais extrema devoção formal, publicitária e dinheirista do mundo capitalista
 
A farsa é afiada, porém, de uma maneira em que há também um olhar afetuoso sobre essa camada cultural dos Estados Unidos. O que, a princípio, demonstra a maturidade de McKay com o material, buscando matizes de complexidade mesmo numa ficção farsesca. O problema de Talladega Nights é que essa contratendência de equilíbrio, agregando as sobras de uma operação enfática de dissolução satírica, usa elementos conservadores que haviam sido expostos ao ridículo. Se não explicita uma metodologia apologética, por outro lado, é como se, paulatinamente, tirasse o pé do acelerador (sim, um trocadilho desse tipo tem que aparecer), buscando o conforto do clichê reconciliador. Na questão essencial que ronda esse tipo de produto, sobre até que ponto a lição de moral é levada a sério pela lógica narrativa ou é ela mesmo um item de observação irônica, Talladega Nights transparece o predomínio da primeira tendência: uma mensagem edificante e familista. E isso fica mais claro com a função de muleta afetiva da personagem de Amy Adams, encaixada como um mero ponto de apoio amoroso de restauração do lar. Junto a isso, os dois filhos “domados” e reeducados, o retorno do pai ausente, enfim, um certo olhar moderado do american dream sobrevive, apesar de atropelado durante a maior parte da farsa.
 
Para uma melhor visualização da insuficiência de Talladega Nights, é recomendável uma comparação com o filme seguinte de McKay, que também uniria a dupla Will Ferrell e John C. Reilly nos papeis principais, a comédia realista Step Brothers (2008). Encenada como sátira intermediária, a dosagem na trama também se faz presente no tratamento eficiente da suposta lição de moral: há superação na trajetória laboral e afetiva dos dois amigos excêntricos, todavia, de um modo que não se reconcilia com o padrão familista habitual, indicando a estrutura essencialmente alienada dessa mediação social. Diferente da farsa Talladega Nights, que, em sintonia com a própria temática do automobilismo, oferece um bom panorama de fluxos, mas some em nitidez para fazer parte dos borrões estranhados em alta velocidade.
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