Eis que surge o “treinamento” da protagonista: na cama, a virgem moça transa mecanicamente com um partidário para que pareça uma mulher casada e sexualmente madura. É uma cena (ainda) sob lençóis, mas bastante “extraterrestre” para um repertório até então mostrado tradicionalmente na tela. Isso é só um indício. Se Ang Lee monta a sua narrativa na maior das transparências, inclusive deixando tudo bastante fluido e solene (sem sair da mesma seara geopolítica — alguém se lembra do curioso The Last Emperor [1987], de Bertolucci?), o momento em que Yee e Wei finalmente se pegam na cama desvela algo que já estava interdito desde o início, no jogo de mahjong entre as mulheres que é filmado com uma câmera que mantém sua elegância num frisson de movimentos um tanto bruscos, decerto acelerados: uma brutalidade inominável. Brutalidade que estaria num outro tipo de cinema, menos iconográfico.
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Espionagem realista
Eis que surge o “treinamento” da protagonista: na cama, a virgem moça transa mecanicamente com um partidário para que pareça uma mulher casada e sexualmente madura. É uma cena (ainda) sob lençóis, mas bastante “extraterrestre” para um repertório até então mostrado tradicionalmente na tela. Isso é só um indício. Se Ang Lee monta a sua narrativa na maior das transparências, inclusive deixando tudo bastante fluido e solene (sem sair da mesma seara geopolítica — alguém se lembra do curioso The Last Emperor [1987], de Bertolucci?), o momento em que Yee e Wei finalmente se pegam na cama desvela algo que já estava interdito desde o início, no jogo de mahjong entre as mulheres que é filmado com uma câmera que mantém sua elegância num frisson de movimentos um tanto bruscos, decerto acelerados: uma brutalidade inominável. Brutalidade que estaria num outro tipo de cinema, menos iconográfico.
quinta-feira, 25 de abril de 2024
Humanismo abstrato
François Truffaut implicava com os bichos e objetos humanizados nos filmes de Albert Lamorisse. Para ele, o cavalo branco que desenvolve uma relação de amizade com a criança e o balão vermelho que segue o menino pelas ruas como um cachorrinho resultavam num artifício fácil demais para ser absolvido de um rigor crítico. Claro que na animação a humanização de bichos é algo corriqueiro, mas é quase impossível não lembrar da birra do cineasta/crítico francês ao ver as imagens de Wall-E dando a mão para Eva, a sonda encarregada de verificar se há possibilidade de vida num planeta destruído pelas toxinas do acúmulo de lixo.
Não é fácil lembrar de exemplo mais poderoso e abusado de humanização de objetos animados. Não aquela humanização cara aos politicamente corretos de plantão, que garante alguns quilos insossos de bom coração e uma nobreza de gestos e atitudes acima de qualquer noção de mundano. Mas uma humanização que deixa entrever todas as características que a compõem, o ciúme, o rancor, a avareza. Deixa entrever coisas das quais os humanos se envergonham na maioria das vezes, e esse é o segredo. Não há paternalismo desnecessário em Wall-E. A sonda Eva vem preparada para matar ao menor sinal de ameaça. É do tipo que atira para depois perguntar. Wall-E, o robozinho, realiza sua tarefa sem deixar de lado seu pendor materialista. Ele salva das sucatas que molda todos os objetos curiosos — aos olhos dele — que encontra pelo caminho. Esses são os sinais mais claros de características que seriam, digamos assim, mais negativas. Há outros, como os que ficam nas entrelinhas dos silêncios enquanto Wall-E observa Eva (que são bem mundanos, nada negativos ou socialmente edificantes), ou os que existem entre as máquinas nos tempos supostamente mortos (surpreendentemente existentes em grande número, ainda que de curta duração).
Mas se engana quem pensa que essa humanização é o que dá o tom de todo o filme. Wall-E contrapõe a humanização das máquinas à robotização dos humanos que aparecem depois de um bom tempo de projeção. É como se o contato com os mais humanos entre os maquinários pudesse resgatar um resquício de vida no mais robótico dos humanos. Esse é o mote principal, sua razão de ser, o que o aproxima de um objetivo, o que lhe dá um sentido moral e cívico, mas em certa medida, o que o enfraquece.
Se essa humanização resvala, por diversas vezes — é necessário dizer —, no mais rameiro lugar-comum eternizado pelas diversas Disneylandias do cinema, com direito aos olhares penetrantes — até mesmo quando são pequenos círculos de neon — ou às mais erráticas atitudes, frutos não de uma programação, mas de uma reação a um estímulo (algo bem humano e preso às fórmulas da comédia romântica clássica), é inevitável constatar também que todas essas simbioses entre o que deveria ser das máquinas e está nos humanos e vice-versa constroem um estranhamento que chega bem perto de causar a aversão de crianças, ou mesmo de adultos que queriam apenas uma diversão simples para distrair suas crias por hora e meia. Wall-E se torna, de uma maneira arriscada até demais levando-se em conta a grife Pixar engolida pela grife maior e mais comportada da Disney, um potencial tiro no pé, o que as bilheterias fizeram o favor de não desmentir, nem de reiterar.
Se não temos como relevar certos esquematismos no confronto inevitável do homem com o aparato criado por ele e que o aprisionou, se não temos como fechar os olhos às piscadelas também inevitáveis ao que se poderia chamar de “filme de mensagem” — pois exigiria um esforço muito grande para driblar o que o tema carrega consigo de modo dantesco; enfim, se não podemos ignorar a sensação de déjà-vu que nos acomete depois que o estranhamento se vai, é da mesma forma imensamente difícil esquecer alguns planos que ficam tranquilamente entre os mais belos do cinema de animação recente: o robozinho demarcando o território com seus blocos compensados de lixo, as luzes da nave formando desenhos no chão que parecem ameaçadores ao robozinho, os tons cinzentos de uma terra aniquilada, a simetria das formas pensadas nos gigantescos espaços interiores da nave Axiom... Além, claro, de uma surpreendente ausência de didatismo durante toda a primeira metade, tornando o filme antes de qualquer coisa uma brilhante representação de um estado de espírito apocalíptico e melancólico, algo como se Al Gore idealizasse a versão menos cabotina e universal de seu discurso em An Inconvenient Truth [2006]. O mundo em Wall-E ainda tem solução, assim como a representação de um mundo, inerente a qualquer manifestação artística, encontra muito mais estofo do que em qualquer blockbuster que pudemos ver nestes últimos anos.
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Lição de casa
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Cinética/2009
Revolutionary Road abandona o jogo de esconde-e-mostra da investigação psicológica que tanto se impõe à suburbia americana. A merda está jogada no ventilador desde a primeira sequência, e nada na montagem ou na própria composição dos planos-emblema, tão caros a Mendes, nos diz que será esta a via a ser tomada — um jogo de passado e presente logo no início já opõe os momentos felizes do encontro do casal-modelo Frank e April Wheeler, seu envolvimento e a mudança para a casa dos sonhos com a primeira das muitas brigas violentas entre os dois. Seguindo a frase-talhada-para-o-trailer onde April diz ao marido um “acho que você é a pessoa mais interessante que já conheci” vem um corte que nos leva para o corpo da jovem amante de Frank nua num quarto de hotel, este mesmo Frank que será enquadrado, na saída do escritório, se destacando pelo sorriso de confiança em meio ao mar de funcionários padronizados que surgem atrás dele, todos vestidos da mesma maneira, carregando o mesmo ar conformado. Mais ainda: se o casal central é a exceção que sacia e conforta a regra (lindos, jovens e felizes dentro de seu mundo autolimpante), tudo o que os envolve é de um ridículo patente — e aqui os coadjuvantes todos parecem decalques desse imaginário, sobretudo as mulheres: a velha corretora de imóveis histriônica, a vizinha invejosa (e histriônica), a amante pueril (e histriônica), todas variações de um mesmo tema abobalhado. Ápice desta descida do protagonista de American Beauty ao coração de todos os personagens ainda vivos em Revolutionary Road, caberá a um louco patológico os momentos de maior lucidez — duas sequências em que Michael Shannon assume o papel do grilo falante, catalisador de todas as tensões que pairam por ali, mas que apenas o know-how de 37 choques elétricos na cabeça permitem verbalizar.
Com todo o entorno sociocultural já resolvido de partida, seus quadros já bem compostos antes mesmo de se chegar a eles, suas revelações feitas antes mesmo que pudessem causar alguma surpresa, seria a hora de ver Sam Mendes finalmente lidando com personagens de verdade, para variar, com dramas minimamente construídos e coerentes dentro desse universo de espoliação moral e decadentismo? Não exatamente. Revolutionary Road é o ponto em que uma prática de esvaziamento sistemático de qualquer sentido que não nasça da exposição óbvia e irrestrita encontra no interior da cena dois competidores à altura, eles também vítimas e parceiros de seu próprio vazio, e é da incapacidade de fazer estas duas instâncias se comunicarem que padece o filme. Frank e April sabem-se diferentes do ambiente castrador do subúrbio, mas esta é menos uma ciência que um palpite voluntarioso: não há nada no modo como se apresentam, naquilo que discutem ou nas possibilidades de futuro que se colocam que deixe claro exatamente onde está esse marco de diferença. Se o plano é escapar para Paris, onde finalmente pudessem dar vazão a toda energia criativa e intelectual de que dispõem, lá não haveria mais do que tempo para descobrir finalmente o que se quer fazer, novos ares, catalisadores de uma potência que na Revolutionary Road é constantemente frustrada. A questão nunca é programar-se para um novo roteiro de vida, mas simplesmente confiar que a mudança de palco já seria transformadora.
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terça-feira, 23 de abril de 2024
Paraíso perigoso
(folhetim,
BRA, 1984),
de Lael Rodrigues.
Se tanta gente acredita que os anos 80 valeram a pena, Bete Balanço merecia ser relançado em DVD com edição caprichada.
Amado na época do seu lançamento pelo público sedento em consumir rock brasileiro na era pré-MTV, posteriormente ficou conhecido como a estreia bombástica de Débora Bloch no cinema — atriz até então acostumada aos papéis na TV, como na novela Sol de Verão [1982–1983]. Hoje em dia, salvando-nos o distanciamento histórico, pode ser lembrado como o primeiro filme da trilogia dirigida por Lael Rodrigues — falecido em 1989 —, com a safra oitentista do rock nacional.
Jabás do jeans Inega, do carro em formato de tênis da Olympikus, do posto de gasolina Ypiranga, convivem com pochetes, mullets, piscadelas, ruídos e dancinhas pretensiosas, que exacerbam as coreografias no estilo “Chorus Line”. Por sinal, atenção no início do filme: Andréa Beltrão, tal qual uma coadjuvante em Cats [1981], saltita ao lado de La Bloch e dançarinos, empunhando bandana, maquiagem pesada e roupas em tom cítrico.
Mas não bastasse esse deleite arqueológico, Bete Balanço apresenta na outra face da moeda — na primeira, a superexposição de Bloch, protagonista em tempo integral —, a imagem calcada em Cazuza e no Barão Vermelho, compositores do hit homônimo. A banda está de tal forma associada ao filme que os músicos inclusive atuam — há a cena clássica na praia de Ipanema, todos sentados em círculo — e servem de gancho para a trama: após ver Cazuza em um show na TV, Bete copia o número e o encena em uma boate da cidade mineira de Governador Valladares, cidade da qual a menina interiorana, recém-aprovada no vestibular, foge tentando seguir carreira artística no Rio.
Prestes a completar 18 anos, Bete deixa Valladares, a segurança de uma futuro tranquilo, com marido e filhos, e vai parar na casa de Paulinho (Diogo Vilela) — um amigo homossexual, viciado nos videogames Odissey. De início, Bete caça um produtor, que lhe prometera uma chance. Encurrala-o em um canto e eis que marcam para o dia seguinte um almoço no restaurante Sol e Mar — na época famoso pelo chiquê; em 1988, o ponto de saída para a trágica excursão do Bateau Mouche.
O produtor lhe dá um bolo e Bete conhece a personagem de Maria Zilda, ricaça que oferece entre indiretas bastante diretas algo que pudesse sustentar a coitada faminta, sem lugar para dormir. A mansão de Zilda é enorme, a piscina idem, mas a expectativa por um bom sexo lésbico na tela é frustrada. A tomada corta na hora certa e trocam apenas um selinho rápido, na típica organização pós-coito: duas moças sorrindo, um lençol na altura dos seios e uma delas indo embora.
Em seguida, no estilo cabeça feita de “o lesbianismo é só uma parte, não o todo”, Bete conhece Rodrigo (Lauro Corona) — fotógrafo que registra a agressão a meninos de rua, presenciada pela quase-estrela —, e tem com ele a versão hetero do romance; esta sim, demonstrada com exuberância de detalhes.
Por insistência de Rodrigo, que encarna o padrão de jovem estourado e justo, Bete assina contrato com um tycoon (Hugo Carvana). O rapaz invade o estúdio de gravação tremulando uma Basf-60 no ar, a mesma fita cassete que conterá a performance genial da namorada que a esta altura já estava viajando para Valladares, desiludida, “querendo dar um tempo”.
O final feliz para o casal chega no modelo de um esquete que lembra os comerciais de cigarros nos anos 80. O filme ganha um tom de fantasia, surge a zona portuária como cenário e a cantora ascende ao estrelato com um nova série de coreografias, soltando a voz pela derradeira vez.
Decisão um tanto quanto equivocada, Bloch não foi dublada em momento algum na filmagem. Mas quem em 1984 se importaria? O público entrava na sala escura “a fim de curtir um som” e de literalmente ver a música. Neste sentido, a mixagem de Roberto de Carvalho ressalta o carisma das gravações e o trabalho “vídeo-clíptico” de Lael Rodrigues — produtor de J. S. Brown, O Último Grande Herói [1980] e diretor de produção de Rio Babilônia [1982] —, aumenta a graça dos 74 minutos desta pérola, que encantou a infância e a adolescência dos trintões e quarentões de 2006.
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segunda-feira, 22 de abril de 2024
Criança problema
Se Orphan conquistou uma considerável fama na cultura pop isso se deve em larga medida à atriz Isabelle Fuhrman, marcante como Esther, a órfã sociopata. Ela até repetiu o papel mesmo deixando de ser atriz mirim, vide a recente prequela — Orphan: First Kill (2022) — que não é dirigida por Collet-Serra. É como se o cineasta catalão, no filme de 2009, tivesse trazido a personagem estranha do seu folhetim criminal House of Wax (2005) para infernizar a rotina de uma solene família norte-americana de classe média. Fria e calculista, ela destoa de tudo ali na casa, no contraste de seus cabelos escuros e a paisagem nevada, nas roupas e gostos atípicos. O fato de Esther ser eslava e adotada incrementa no pacote preconceituoso do imaginário que teme o perigo externo adentrando a casa de uma tradicional família nuclear — embora a família não seja mostrada como um comercial de margarina, estava num período mais estabilizado. Deste modo, no contato da pequena manipuladora com as feridas familiares, nos damos conta que aquilo que poderia ter sido encenado com o frescor folhetinesco, realçando ironicamente determinados costumes, resulta num mystery thriller que caminha sorrateiramente na sua cafonice maniqueísta.
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domingo, 21 de abril de 2024
Ciclo econômico
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Disciplina escolar
Project Almanac
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