sexta-feira, 26 de abril de 2024

Espionagem realista

Se, Jie

(tríler,
CHN/USA, 2007),
de Ang Lee.
 


= = =
por Paulo Santos Lima
Cinética/2007 
 
O sexo, a imagem e sua transcendência 

O cinema de Ang Lee é bastante curioso. Seus filmes, em princípio, parecem aqueles realizados por um artesão de estúdio, seguindo uma pauta bem formatada ao cinema de gênero. Mas ao mesmo tempo, entre coisa e outra que aparecem na tela, surge algo de diferente, que cria uma certa rachadura ou mancha na arquitetura construída. Podemos chamar de um cinema “denorex”, cujo exemplo literal, ao nível da história contada, está em Xi Yan [1993] (o cara que se declara gay na sua festa de casamento com uma pequena), e mostra-se de modo mais complexo em Hulk [2003] (careta na péssima dramaturgia mas traduzindo as HQs para o cinema a ponto de reproduzir com os movimentos de câmera e splitscreens um mirabolante exercício de leitura em “páginas” em formato 1:85).
 
Se, Jie é outro “parece mas não é” de Ang Lee, cuja “trapaça” se faz ainda maior (talvez porque todo o filme pareça “maior”): pomposo, utilizando vários recursos narrativo-industriais, uma superprodução daquelas que nos fazem lembrar das altas somas despendidas. Estamos numa espécie de thriller dramático de espionagem que acontece entre os anos 30 e 40, durante a invasão japonesa na China, país já tumultuado pelos ingleses. Acompanhamos a gênese militante da protagonista, Wei Tang (Wang Hui Ling), estudante em Hong Kong que parte para a resistência contra os invasores nipônicos. Sua primeira missão não será, assim, tão caloura: seduzir o colaboracionista Yee (Tony Leung), figurão do governo chinês, e atraí-lo para uma tocaia mortal. Ele, na maior tradição romanesca (e dos thrillers de espionagem da história do cinema), apaixonar-se-á pela bonitinha — o que não é, afinal, algo muito difícil. Lee utiliza-se de uma gramática aparentemente tradicional, que narra um entrecho já bastante sedimentado pela história do cinema, utilizando consonantemente a trilha incidental e sonora com as ações, montagem colando aveludadamente os planos, códigos dramatúrgicos bem conhecidos etc.

Eis que surge o “treinamento” da protagonista: na cama, a virgem moça transa mecanicamente com um partidário para que pareça uma mulher casada e sexualmente madura. É uma cena (ainda) sob lençóis, mas bastante “extraterrestre” para um repertório até então mostrado tradicionalmente na tela. Isso é só um indício. Se Ang Lee monta a sua narrativa na maior das transparências, inclusive deixando tudo bastante fluido e solene (sem sair da mesma seara geopolítica — alguém se lembra do curioso The Last Emperor [1987], de Bertolucci?), o momento em que Yee e Wei finalmente se pegam na cama desvela algo que já estava interdito desde o início, no jogo de mahjong entre as mulheres que é filmado com uma câmera que mantém sua elegância num frisson de movimentos um tanto bruscos, decerto acelerados: uma brutalidade inominável. Brutalidade que estaria num outro tipo de cinema, menos iconográfico.

E daí vem a rasteira genial de Ang Lee, na medida em que a cena de sexo, carnal, no melhor exemplo de cinema físico, é ambígua — Yee maltrata a sua amante ou apenas a celebra de modo um tanto fora dos padrões? A doce Wei geme de dor, desespero ou prazer? Saberemos (em termos) lá pela frente. O que temos, de palpável, bem... são os corpos: as curvas, planícies e vales carnais, rala relva de pelos axilares e pubianos de Wei, tudo muito bem inscrito na tela, com o corpo do austero Yee completando a geografia corporal nos atos sexuais. Tudo isso, é bom lembrar, sob forte desconforto de uma trilha incidental que acompanha os bofetes e trancaços de Yee contra Wei, até chegarem ao momento supremo das manobras. Talvez seja sexo explícito, mas a câmera não chega a centímetros da penetração, e uma sombra ajuda a deixar a coisa menos evidente.

A partir dessa sequência, o filme literalmente penetra fundo, como diz Wei sobre como Yee a invade como uma serpente; assim como, depois, quando ele chega ao êxtase, ela o tem nas mãos. Mantendo a mesma gramática, o filme mudará um pouco a sua caligrafia, com mais pulsação, tensão e imagens cáusticas (menos a de sexo e mais um plano no qual a câmera vai literalmente para o abismo). É no terço final que fica claro que Se, Jie versa sobre o amor e o sexo: o amor roubado de Wei pela militância política (ela gostava de um jovem colega, Kuang) e o sexo que será o caminho possível para vida e morte (é o sexo com Yee o que Wei tem de mais certo, o que justifica sua paixão por ele). O amor e o sexo que também estão na própria construção do filme, que em princípio e constrói romanticamente suas cenas para, no correr, descortiná-las de seu lamê e mostrar seu corpo, o que há por trás dos adereços.

Não é por menos que o último plano deste longa mostra um leito vazio, imagem subjetiva de alguém que pena por uma ausência; ausência que deixa deserta aquela cama, lugar de revelações e explosões de sentidos, ambiguidades e certezas. Já que o sexo faz transcender, Ang Lee, cineasta afinado ao cinema de gênero, tenta a imagem transcendental para fazer seu filme idem. Se, Jie é belíssimo filme de alcova.

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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Humanismo abstrato

Wall-E
 
(comédia,
USA, 2008),
de Andrew Stanton
 

 
= = =
por Sérgio Alpendre
Contracampo/2008

François Truffaut implicava com os bichos e objetos humanizados nos filmes de Albert Lamorisse. Para ele, o cavalo branco que desenvolve uma relação de amizade com a criança e o balão vermelho que segue o menino pelas ruas como um cachorrinho resultavam num artifício fácil demais para ser absolvido de um rigor crítico. Claro que na animação a humanização de bichos é algo corriqueiro, mas é quase impossível não lembrar da birra do cineasta/crítico francês ao ver as imagens de Wall-E dando a mão para Eva, a sonda encarregada de verificar se há possibilidade de vida num planeta destruído pelas toxinas do acúmulo de lixo.

Não é fácil lembrar de exemplo mais poderoso e abusado de humanização de objetos animados. Não aquela humanização cara aos politicamente corretos de plantão, que garante alguns quilos insossos de bom coração e uma nobreza de gestos e atitudes acima de qualquer noção de mundano. Mas uma humanização que deixa entrever todas as características que a compõem, o ciúme, o rancor, a avareza. Deixa entrever coisas das quais os humanos se envergonham na maioria das vezes, e esse é o segredo. Não há paternalismo desnecessário em Wall-E. A sonda Eva vem preparada para matar ao menor sinal de ameaça. É do tipo que atira para depois perguntar. Wall-E, o robozinho, realiza sua tarefa sem deixar de lado seu pendor materialista. Ele salva das sucatas que molda todos os objetos curiosos — aos olhos dele — que encontra pelo caminho. Esses são os sinais mais claros de características que seriam, digamos assim, mais negativas. Há outros, como os que ficam nas entrelinhas dos silêncios enquanto Wall-E observa Eva (que são bem mundanos, nada negativos ou socialmente edificantes), ou os que existem entre as máquinas nos tempos supostamente mortos (surpreendentemente existentes em grande número, ainda que de curta duração).

Mas se engana quem pensa que essa humanização é o que dá o tom de todo o filme. Wall-E contrapõe a humanização das máquinas à robotização dos humanos que aparecem depois de um bom tempo de projeção. É como se o contato com os mais humanos entre os maquinários pudesse resgatar um resquício de vida no mais robótico dos humanos. Esse é o mote principal, sua razão de ser, o que o aproxima de um objetivo, o que lhe dá um sentido moral e cívico, mas em certa medida, o que o enfraquece.

Se essa humanização resvala, por diversas vezes — é necessário dizer —, no mais rameiro lugar-comum eternizado pelas diversas Disneylandias do cinema, com direito aos olhares penetrantes — até mesmo quando são pequenos círculos de neon — ou às mais erráticas atitudes, frutos não de uma programação, mas de uma reação a um estímulo (algo bem humano e preso às fórmulas da comédia romântica clássica), é inevitável constatar também que todas essas simbioses entre o que deveria ser das máquinas e está nos humanos e vice-versa constroem um estranhamento que chega bem perto de causar a aversão de crianças, ou mesmo de adultos que queriam apenas uma diversão simples para distrair suas crias por hora e meia. Wall-E se torna, de uma maneira arriscada até demais levando-se em conta a grife Pixar engolida pela grife maior e mais comportada da Disney, um potencial tiro no pé, o que as bilheterias fizeram o favor de não desmentir, nem de reiterar.

Se não temos como relevar certos esquematismos no confronto inevitável do homem com o aparato criado por ele e que o aprisionou, se não temos como fechar os olhos às piscadelas também inevitáveis ao que se poderia chamar de “filme de mensagem” — pois exigiria um esforço muito grande para driblar o que o tema carrega consigo de modo dantesco; enfim, se não podemos ignorar a sensação de déjà-vu que nos acomete depois que o estranhamento se vai, é da mesma forma imensamente difícil esquecer alguns planos que ficam tranquilamente entre os mais belos do cinema de animação recente: o robozinho demarcando o território com seus blocos compensados de lixo, as luzes da nave formando desenhos no chão que parecem ameaçadores ao robozinho, os tons cinzentos de uma terra aniquilada, a simetria das formas pensadas nos gigantescos espaços interiores da nave Axiom... Além, claro, de uma surpreendente ausência de didatismo durante toda a primeira metade, tornando o filme antes de qualquer coisa uma brilhante representação de um estado de espírito apocalíptico e melancólico, algo como se Al Gore idealizasse a versão menos cabotina e universal de seu discurso em An Inconvenient Truth [2006]. O mundo em Wall-E ainda tem solução, assim como a representação de um mundo, inerente a qualquer manifestação artística, encontra muito mais estofo do que em qualquer blockbuster que pudemos ver nestes últimos anos.

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Lista de sci-fi comedy no subgênero space fiction:
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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Lição de casa

Revolutionary Road

(tragédia,
USA/UK, 2008),
de Sam Mendes.


 
= = =
por Rodrigo de Oliveira
Cinética/2009

O desespero é só uma performance 
 
Sim, o sonho americano é um pesadelo, os subúrbios são a face mascarada do verdadeiro inferno na terra, e a ironia cruel de uma rua ali se chamar “revolucionária” só acentua a ideia de que já passamos do momento da escavação moral: está tudo na superfície, todos os sentidos estão dados, sem meios-termos e sem inocência. Mas isso sabe-se desde muito tempo — o romance de Richard Yates é de 1961, e de lá para cá quantas vezes não fomos expostos a este mesmo ambiente de mobílias brilhantes, iluminação ensolarada, ternos bem cortados, cabelos armados e terror, o puro terror esperando ali embaixo por sua libertação? Revolutionary Road é devedor dessa consciência, e é um tanto surpreendente sabê-lo do mesmo diretor de American Beauty [1999], uma vez que há pouco tempo atrás Sam Mendes precisara matar seu protagonista para então, com sua voz e olhar vindos de um além onisciente, mostrar que não havia antídoto para o cinismo geral que não mais cinismo — agora sapiente, revelador e, vá lá, revolucionário em seus próprios termos. Muito rápido se percebeu a farsa deste que é seu filme mais famoso, mas Mendes exercitava ali não apenas um delírio iconoclasta mal-ajambrado — e Road to Perdition [2002] e Jarhead [2005] confirmariam que, ao cineasta da elegância à toda prova, interessava exatamente isso: encontrar universos onde tudo já estivesse dado, onde operasse um sistema de tal forma implicado na existência dos personagens e nos próprios espaços e objetos que os cercassem que dali não se pudesse tirar outra coisa que não um diagnóstico do mal, os retratos mais bonitos (porque “verdadeiros”) de uma cena que já é por si só emoldurada, com seus limites bem traçados e seus abismos internos devidamente enquadrados.

Revolutionary Road abandona o jogo de esconde-e-mostra da investigação psicológica que tanto se impõe à suburbia americana. A merda está jogada no ventilador desde a primeira sequência, e nada na montagem ou na própria composição dos planos-emblema, tão caros a Mendes, nos diz que será esta a via a ser tomada — um jogo de passado e presente logo no início já opõe os momentos felizes do encontro do casal-modelo Frank e April Wheeler, seu envolvimento e a mudança para a casa dos sonhos com a primeira das muitas brigas violentas entre os dois. Seguindo a frase-talhada-para-o-trailer onde April diz ao marido um “acho que você é a pessoa mais interessante que já conheci” vem um corte que nos leva para o corpo da jovem amante de Frank nua num quarto de hotel, este mesmo Frank que será enquadrado, na saída do escritório, se destacando pelo sorriso de confiança em meio ao mar de funcionários padronizados que surgem atrás dele, todos vestidos da mesma maneira, carregando o mesmo ar conformado. Mais ainda: se o casal central é a exceção que sacia e conforta a regra (lindos, jovens e felizes dentro de seu mundo autolimpante), tudo o que os envolve é de um ridículo patente — e aqui os coadjuvantes todos parecem decalques desse imaginário, sobretudo as mulheres: a velha corretora de imóveis histriônica, a vizinha invejosa (e histriônica), a amante pueril (e histriônica), todas variações de um mesmo tema abobalhado. Ápice desta descida do protagonista de American Beauty ao coração de todos os personagens ainda vivos em Revolutionary Road, caberá a um louco patológico os momentos de maior lucidez — duas sequências em que Michael Shannon assume o papel do grilo falante, catalisador de todas as tensões que pairam por ali, mas que apenas o know-how de 37 choques elétricos na cabeça permitem verbalizar.

Com todo o entorno sociocultural já resolvido de partida, seus quadros já bem compostos antes mesmo de se chegar a eles, suas revelações feitas antes mesmo que pudessem causar alguma surpresa, seria a hora de ver Sam Mendes finalmente lidando com personagens de verdade, para variar, com dramas minimamente construídos e coerentes dentro desse universo de espoliação moral e decadentismo? Não exatamente. Revolutionary Road é o ponto em que uma prática de esvaziamento sistemático de qualquer sentido que não nasça da exposição óbvia e irrestrita encontra no interior da cena dois competidores à altura, eles também vítimas e parceiros de seu próprio vazio, e é da incapacidade de fazer estas duas instâncias se comunicarem que padece o filme. Frank e April sabem-se diferentes do ambiente castrador do subúrbio, mas esta é menos uma ciência que um palpite voluntarioso: não há nada no modo como se apresentam, naquilo que discutem ou nas possibilidades de futuro que se colocam que deixe claro exatamente onde está esse marco de diferença. Se o plano é escapar para Paris, onde finalmente pudessem dar vazão a toda energia criativa e intelectual de que dispõem, lá não haveria mais do que tempo para descobrir finalmente o que se quer fazer, novos ares, catalisadores de uma potência que na Revolutionary Road é constantemente frustrada. A questão nunca é programar-se para um novo roteiro de vida, mas simplesmente confiar que a mudança de palco já seria transformadora.

E é mesmo de palco e de cena que Frank e April precisam. Como o próprio cinema de Sam Mendes, o casal funciona na chave da mediocridade reativa, onde quanto menor for o valor real dos dramas em questão, maior será o tamanho do grito que o fará conhecido, num estranho jogo de exacerbação radical de emoções que nunca estiveram realmente lá, para começar. Que a primeira briga dos dois se dê à frente dos faróis acesos de um carro, “iluminados para brilhar” em toda sua miséria humana, só reforça que o objeto não é a transformação — não se sabe para quê mudar, afinal de contas — e sim a maneira como se encena o desejo dessa transformação: um desejo burro, inconsistente, mas que é desejo de performance. Tudo está dois ou três tons acima, e Revolutionary Road fica sempre melhor quando aposta neste excesso de atuação, regime no qual Leonardo DiCaprio e Kate Winslet trabalham muito bem. O eco aqui está num Who's Afraid of Virginia Woolf? [1966] ou ainda em Long Day's Journey into Night [1962], mas se Mike Nichols e Sidney Lumet tinham substância o bastante no interior da cena para se dedicar a uma dinâmica de interação entre personagens e espaços que prescindia da metáfora (porque era, toda ela, sua própria metáfora e suspensão de sentidos), aqui Sam Mendes se debaterá constantemente com a incapacidade de criar de fato os ambientes e as sensações que o casal protagonista despeja tão verborragicamente na tela. Todo clima de felicidade é filmado com uma obviedade jocosa insustentável, toda tentativa de tensão é logo sustada pela recorrência do quadro mais bonito (é desses cineastas que sempre prefere a beleza à justeza), e mesmo quando diante da iminência do terror — um café-da-manhã tranquilo depois de uma batalha noturna, o envolvimento extraconjugal ao som de um tango, a perda de um filho — vale para a câmera o mesmo mandamento dos personagens desesperados por nada. E em Revolutionary Road só há espaço para um medíocre performático de cada vez.

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terça-feira, 23 de abril de 2024

Paraíso perigoso

Bete Balanço

(folhetim,
BRA, 1984),
de Lael Rodrigues.
 

 

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por Andrea Ormond
Estranho Encontro/2006

Se tanta gente acredita que os anos 80 valeram a pena, Bete Balanço merecia ser relançado em DVD com edição caprichada.

Amado na época do seu lançamento pelo público sedento em consumir rock brasileiro na era pré-MTV, posteriormente ficou conhecido como a estreia bombástica de Débora Bloch no cinema — atriz até então acostumada aos papéis na TV, como na novela Sol de Verão [1982–1983]. Hoje em dia, salvando-nos o distanciamento histórico, pode ser lembrado como o primeiro filme da trilogia dirigida por Lael Rodrigues — falecido em 1989 —, com a safra oitentista do rock nacional.

Bete Balanço, Rock Estrela (1986) e Rádio Pirata (1987), os três filmes de Lael, representaram para seu tempo a mesma coisa que os filmes de Roberto Carlos representaram para a Jovem Guarda. Ultra-datados, ultra-ingênuos, podem soar também ultra-ridículos quando vistos sem a tolerância carinhosa ou a nostalgia desmedida daqueles que viveram (ou sonharam em viver) aquelas tardes de 1984. Um 1984 carioca, cheio de juventude, praia e o sonho de montar uma banda para ser famosa e “levar todos os gatinhos para a cama”, como dizia a canção das Metralhatxecas, parte integrante da trilha-sonora campeã de vendas.

Jabás do jeans Inega, do carro em formato de tênis da Olympikus, do posto de gasolina Ypiranga, convivem com pochetes, mullets, piscadelas, ruídos e dancinhas pretensiosas, que exacerbam as coreografias no estilo “Chorus Line”. Por sinal, atenção no início do filme: Andréa Beltrão, tal qual uma coadjuvante em Cats [1981], saltita ao lado de La Bloch e dançarinos, empunhando bandana, maquiagem pesada e roupas em tom cítrico.

Mas não bastasse esse deleite arqueológico, Bete Balanço apresenta na outra face da moeda — na primeira, a superexposição de Bloch, protagonista em tempo integral —, a imagem calcada em Cazuza e no Barão Vermelho, compositores do hit homônimo. A banda está de tal forma associada ao filme que os músicos inclusive atuam — há a cena clássica na praia de Ipanema, todos sentados em círculo — e servem de gancho para a trama: após ver Cazuza em um show na TV, Bete copia o número e o encena em uma boate da cidade mineira de Governador Valladares, cidade da qual a menina interiorana, recém-aprovada no vestibular, foge tentando seguir carreira artística no Rio.

Prestes a completar 18 anos, Bete deixa Valladares, a segurança de uma futuro tranquilo, com marido e filhos, e vai parar na casa de Paulinho (Diogo Vilela) — um amigo homossexual, viciado nos videogames Odissey. De início, Bete caça um produtor, que lhe prometera uma chance. Encurrala-o em um canto e eis que marcam para o dia seguinte um almoço no restaurante Sol e Mar — na época famoso pelo chiquê; em 1988, o ponto de saída para a trágica excursão do Bateau Mouche.

O produtor lhe dá um bolo e Bete conhece a personagem de Maria Zilda, ricaça que oferece entre indiretas bastante diretas algo que pudesse sustentar a coitada faminta, sem lugar para dormir. A mansão de Zilda é enorme, a piscina idem, mas a expectativa por um bom sexo lésbico na tela é frustrada. A tomada corta na hora certa e trocam apenas um selinho rápido, na típica organização pós-coito: duas moças sorrindo, um lençol na altura dos seios e uma delas indo embora.

Em seguida, no estilo cabeça feita de “o lesbianismo é só uma parte, não o todo”, Bete conhece Rodrigo (Lauro Corona) — fotógrafo que registra a agressão a meninos de rua, presenciada pela quase-estrela —, e tem com ele a versão hetero do romance; esta sim, demonstrada com exuberância de detalhes.

Por insistência de Rodrigo, que encarna o padrão de jovem estourado e justo, Bete assina contrato com um tycoon (Hugo Carvana). O rapaz invade o estúdio de gravação tremulando uma Basf-60 no ar, a mesma fita cassete que conterá a performance genial da namorada que a esta altura já estava viajando para Valladares, desiludida, “querendo dar um tempo”.

O final feliz para o casal chega no modelo de um esquete que lembra os comerciais de cigarros nos anos 80. O filme ganha um tom de fantasia, surge a zona portuária como cenário e a cantora ascende ao estrelato com um nova série de coreografias, soltando a voz pela derradeira vez.

Decisão um tanto quanto equivocada, Bloch não foi dublada em momento algum na filmagem. Mas quem em 1984 se importaria? O público entrava na sala escura “a fim de curtir um som” e de literalmente ver a música. Neste sentido, a mixagem de Roberto de Carvalho ressalta o carisma das gravações e o trabalho “vídeo-clíptico” de Lael Rodrigues — produtor de J. S. Brown, O Último Grande Herói [1980] e diretor de produção de Rio Babilônia [1982] —, aumenta a graça dos 74 minutos desta pérola, que encantou a infância e a adolescência dos trintões e quarentões de 2006.

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Lista de fantasy feuilleton no subgênero magical fiction:
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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Criança problema

Orphan 

(tríler,
USA/CAN/GER/FRA, 2009),
de Jaume Collet-Serra.


 
por Paulo Ayres

O que mais chama a atenção em Orphan não é a mescla de crueldade e infantilidade que movimenta a trama — algo já utilizado em outras obras —, mas como a crueldade é tratada infantilmente pelos realizadores do filme, ao fazer aquela velha e má escolha de dar requinte a algo que não pede requinte. Seria mais fácil lidar com um material assim numa sátira, mas Jaume Collet-Serra e sua equipe, sabe-se lá o porquê, nos dão um tríler, apostando na dramatização dos problemas familiares vividos pelo casal feito por Vera Farmiga e Peter Sarsgaard. Isso, mesclado ao método do “filme de susto” padrão, dá vida a um drama edificante que desperdiça seus elementos profundos de sofrimento familiar e extravasa seus momentos de violência. Nesse sentido, até mesmo a criativa revelação final perde parte do seu impacto, pois, nessa forma de encenação audiovisual, fica próxima do Clark Kent dramático de Zack Snyder, em Batman v Superman (2016), tirando e colocando os óculos como disfarce. Só não chega a esse nível patético porque Collet-Serra não filma de forma espalhafatosa como Snyder, pois deve ter consciência de que o conteúdo, em si mesmo, já tem um peso caricatural que precisa ser encenado com certo equilíbrio, na medida do possível.

Se Orphan conquistou uma considerável fama na cultura pop isso se deve em larga medida à atriz Isabelle Fuhrman, marcante como Esther, a órfã sociopata. Ela até repetiu o papel mesmo deixando de ser atriz mirim, vide a recente prequela — Orphan: First Kill (2022) — que não é dirigida por Collet-Serra. É como se o cineasta catalão, no filme de 2009, tivesse trazido a personagem estranha do seu folhetim criminal House of Wax (2005) para infernizar a rotina de uma solene família norte-americana de classe média. Fria e calculista, ela destoa de tudo ali na casa, no contraste de seus cabelos escuros e a paisagem nevada, nas roupas e gostos atípicos. O fato de Esther ser eslava e adotada incrementa no pacote preconceituoso do imaginário que teme o perigo externo adentrando a casa de uma tradicional família nuclear — embora a família não seja mostrada como um comercial de margarina, estava num período mais estabilizado. Deste modo, no contato da pequena manipuladora com as feridas familiares, nos damos conta que aquilo que poderia ter sido encenado com o frescor folhetinesco, realçando ironicamente determinados costumes, resulta num mystery thriller que caminha sorrateiramente na sua cafonice maniqueísta.

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[0] Primeiro tratamento: 29/05/2020.
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domingo, 21 de abril de 2024

Ciclo econômico

Mulheres à Vista 

(farsa,
BRA, 1959),
de J. B. Tanko.
 

 
por Paulo Ayres

A ideologia do desenvolvimentismo estava em alta no Brasil de 1959 e essa tendência econômica está no espelhamento estético de Mulheres à Vista. Zé Trindade, dessa vez, faz um malandro chamado João Flores que arma um esquema de financiamento para seu espetáculo de teatro de revista. “O negócio é comprar a prazo e vender à vista”, diz o empresário picareta que compra uma porção de bens (móveis, veículos e eletrodomésticos) para ganhar dinheiro com a revenda. Economia brasileira aquecida num ciclo temporário de expansão de consumo para certas camadas urbanas, o filme de J. B. Tanko ilustra essa onda. Porém essa sátira edificante emerge num momento histórico em que sua própria configuração lhe dá uma identidade de produto datado e mercadoria encalhada. A oferta de obras da Chanchada entrava, gradualmente, em contradição com a demanda.
 
Enquanto Zé Trindade está numa posição de maestro — até literalmente, regendo uma orquestra no improviso —, o pobre do Grande Otelo está tão deslocado que seu pequeno papel de coadjuvante parece mais um figurante de luxo com falas. Em Mulheres à Vista, o palco que interessa, de fato, é onde estão os espectadores, ou melhor, determinada espectadora de camarote: Madame Virtuosa (Estelita Bell), a viúva dona da casa teatral carioca. É assim porque a trama gira em torno do dinheiro, assim como evidencia que é a mediação do dinheiro que faz as coisas girarem no mundo capitalista. Mais do que em momentos anteriores, Tanko percebe que as vedetes e as canções funcionam como adornos e o que é mais básico é observar a questão do financiamento da arte. Certos adornos de roteiro, então, enfeiam o desenvolvimento do produto. Ironia involuntária: o subplot da vedete bonitinha faz isso, enquanto a vedete Boca de Caçapa (Consuelo Leandro) traz beleza farsesca. Melhor do que ela só o credor português realizando algumas passagens com a performance visual que é típica da farsa física.

A contração que esse movimento cinematográfico brasileiro experimentava faz parte de um ciclo de décadas. Sem recuperação, mas deixando um legado artístico.

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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Disciplina escolar

Project Almanac 

(dramédia,
USA, 2015),
de Dean Israelite.
 

 
por Paulo Ayres

Um filme do ano de 2015 que tem “almanaque” no nome? Não pode ser só coincidência. Parece uma referência a um dos momentos mais criativos em que o cinema de ficção científica fala sobre viagem no tempo e realidades alternativas: Back to the Future II (1989). Não é somente o melhor filme da trilogia de Robert Zemeckis, mas é também uma sátira realista, pois não romantiza e deixa as pontas soltas. Bem diferente da encenação comediesca de Zemeckis,  Project Almanac produzido por Michael Bay e dirigido pelo estreante Dean Israelite é um drama found footage. Isso quer dizer que, assim como The Blair Witch Project (1999) simulava uma filmagem real feita com câmera caseira, este filme se apresenta, na aparência, como um vídeo “encontrado” sobre um misterioso projeto científico. Entretanto, mesmo sendo encenado com um cuidado quase documental, numa montagem às vezes frenética e claustrofóbica, Project Almanac se assume como um teen movie no sentido clichê que essa classificação evoca como uma tradição.
 
A dramédia tem como base a família de dois irmãos adolescentes, David e Christina Raskin — o protagonista geek e a cinegrafista —, que descobrem um projeto secreto e governamental do seu falecido pai sobre uma máquina do tempo. Depois de montada a máquina, o grupo juvenil (os dois irmãos mais três amigos) passa a consertar pequenos deslizes do passado recente, subvertendo o ambiente high school em favor do grupo de “rejeitados”, até que estes impopulares reinem soberanos. Além disso, como era de se esperar, a segunda chance inclui ficarem ricos através da loteria. Project Almanac se mantém ousado enquanto ironiza as respostas a um determinado cotidiano tipificado. Deste modo, é necessário se deter numa diferenciação na análise da obra: a questão da imaturidade. Ela é totalmente válida nas ações das personagens porque são representações da média de consciência da nossa forma sociabilidade e com as questões próprias de seu ambiente e faixa etária. Outra dimensão é a imaturidade estética que há na abordagem de um drama edificante.
 
O festival Lollapalooza é um divisor de águas na techno-dramedy e parte da farra é subir ao palco com a banda Imagine Dragons. Sem fazer parte dessa trilha sonora da MTV Films, a analogia que há na canção brasileira Primeiros Erros, de Kiko Zambianchi, ilustra o que ocorre no enredo: na busca por deixar a vida cada vez mais ensolarada, luminosa, as coisas saem do controle e as chuvas se tornam tempestade. O que, até certa parte, tem um clima bem interessante de experimento secreto e na investigação da sinistra aparição numa antiga filmagem de aniversário, torna-se um cada vez mais inverossímil no registro onipresente da simulação de câmera caseira. Vai entrando no foco desse registro a intimidade do protagonista, não no sentido de imagem erótica, mas de educação sentimental mais comportada e banal. Na última parte, David está na correção dos efeitos colaterais desastrosos e, nesse sentido, isso passa a soar como a ressaca e a limpeza de uma casa após uma festa juvenil.
 
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Lista de sci-fi dramedy no subgênero techno-fiction:
[0] Primeiro tratamento: 21/05/2020.
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