quarta-feira, 24 de abril de 2024

Lição de casa

Revolutionary Road

(tragédia,
USA/UK, 2008),
de Sam Mendes.


 
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por Rodrigo de Oliveira
Cinética/2009

O desespero é só uma performance 
 
Sim, o sonho americano é um pesadelo, os subúrbios são a face mascarada do verdadeiro inferno na terra, e a ironia cruel de uma rua ali se chamar “revolucionária” só acentua a ideia de que já passamos do momento da escavação moral: está tudo na superfície, todos os sentidos estão dados, sem meios-termos e sem inocência. Mas isso sabe-se desde muito tempo — o romance de Richard Yates é de 1961, e de lá para cá quantas vezes não fomos expostos a este mesmo ambiente de mobílias brilhantes, iluminação ensolarada, ternos bem cortados, cabelos armados e terror, o puro terror esperando ali embaixo por sua libertação? Revolutionary Road é devedor dessa consciência, e é um tanto surpreendente sabê-lo do mesmo diretor de American Beauty [1999], uma vez que há pouco tempo atrás Sam Mendes precisara matar seu protagonista para então, com sua voz e olhar vindos de um além onisciente, mostrar que não havia antídoto para o cinismo geral que não mais cinismo — agora sapiente, revelador e, vá lá, revolucionário em seus próprios termos. Muito rápido se percebeu a farsa deste que é seu filme mais famoso, mas Mendes exercitava ali não apenas um delírio iconoclasta mal-ajambrado — e Road to Perdition [2002] e Jarhead [2005] confirmariam que, ao cineasta da elegância à toda prova, interessava exatamente isso: encontrar universos onde tudo já estivesse dado, onde operasse um sistema de tal forma implicado na existência dos personagens e nos próprios espaços e objetos que os cercassem que dali não se pudesse tirar outra coisa que não um diagnóstico do mal, os retratos mais bonitos (porque “verdadeiros”) de uma cena que já é por si só emoldurada, com seus limites bem traçados e seus abismos internos devidamente enquadrados.

Revolutionary Road abandona o jogo de esconde-e-mostra da investigação psicológica que tanto se impõe à suburbia americana. A merda está jogada no ventilador desde a primeira sequência, e nada na montagem ou na própria composição dos planos-emblema, tão caros a Mendes, nos diz que será esta a via a ser tomada — um jogo de passado e presente logo no início já opõe os momentos felizes do encontro do casal-modelo Frank e April Wheeler, seu envolvimento e a mudança para a casa dos sonhos com a primeira das muitas brigas violentas entre os dois. Seguindo a frase-talhada-para-o-trailer onde April diz ao marido um “acho que você é a pessoa mais interessante que já conheci” vem um corte que nos leva para o corpo da jovem amante de Frank nua num quarto de hotel, este mesmo Frank que será enquadrado, na saída do escritório, se destacando pelo sorriso de confiança em meio ao mar de funcionários padronizados que surgem atrás dele, todos vestidos da mesma maneira, carregando o mesmo ar conformado. Mais ainda: se o casal central é a exceção que sacia e conforta a regra (lindos, jovens e felizes dentro de seu mundo autolimpante), tudo o que os envolve é de um ridículo patente — e aqui os coadjuvantes todos parecem decalques desse imaginário, sobretudo as mulheres: a velha corretora de imóveis histriônica, a vizinha invejosa (e histriônica), a amante pueril (e histriônica), todas variações de um mesmo tema abobalhado. Ápice desta descida do protagonista de American Beauty ao coração de todos os personagens ainda vivos em Revolutionary Road, caberá a um louco patológico os momentos de maior lucidez — duas sequências em que Michael Shannon assume o papel do grilo falante, catalisador de todas as tensões que pairam por ali, mas que apenas o know-how de 37 choques elétricos na cabeça permitem verbalizar.

Com todo o entorno sociocultural já resolvido de partida, seus quadros já bem compostos antes mesmo de se chegar a eles, suas revelações feitas antes mesmo que pudessem causar alguma surpresa, seria a hora de ver Sam Mendes finalmente lidando com personagens de verdade, para variar, com dramas minimamente construídos e coerentes dentro desse universo de espoliação moral e decadentismo? Não exatamente. Revolutionary Road é o ponto em que uma prática de esvaziamento sistemático de qualquer sentido que não nasça da exposição óbvia e irrestrita encontra no interior da cena dois competidores à altura, eles também vítimas e parceiros de seu próprio vazio, e é da incapacidade de fazer estas duas instâncias se comunicarem que padece o filme. Frank e April sabem-se diferentes do ambiente castrador do subúrbio, mas esta é menos uma ciência que um palpite voluntarioso: não há nada no modo como se apresentam, naquilo que discutem ou nas possibilidades de futuro que se colocam que deixe claro exatamente onde está esse marco de diferença. Se o plano é escapar para Paris, onde finalmente pudessem dar vazão a toda energia criativa e intelectual de que dispõem, lá não haveria mais do que tempo para descobrir finalmente o que se quer fazer, novos ares, catalisadores de uma potência que na Revolutionary Road é constantemente frustrada. A questão nunca é programar-se para um novo roteiro de vida, mas simplesmente confiar que a mudança de palco já seria transformadora.

E é mesmo de palco e de cena que Frank e April precisam. Como o próprio cinema de Sam Mendes, o casal funciona na chave da mediocridade reativa, onde quanto menor for o valor real dos dramas em questão, maior será o tamanho do grito que o fará conhecido, num estranho jogo de exacerbação radical de emoções que nunca estiveram realmente lá, para começar. Que a primeira briga dos dois se dê à frente dos faróis acesos de um carro, “iluminados para brilhar” em toda sua miséria humana, só reforça que o objeto não é a transformação — não se sabe para quê mudar, afinal de contas — e sim a maneira como se encena o desejo dessa transformação: um desejo burro, inconsistente, mas que é desejo de performance. Tudo está dois ou três tons acima, e Revolutionary Road fica sempre melhor quando aposta neste excesso de atuação, regime no qual Leonardo DiCaprio e Kate Winslet trabalham muito bem. O eco aqui está num Who's Afraid of Virginia Woolf? [1966] ou ainda em Long Day's Journey into Night [1962], mas se Mike Nichols e Sidney Lumet tinham substância o bastante no interior da cena para se dedicar a uma dinâmica de interação entre personagens e espaços que prescindia da metáfora (porque era, toda ela, sua própria metáfora e suspensão de sentidos), aqui Sam Mendes se debaterá constantemente com a incapacidade de criar de fato os ambientes e as sensações que o casal protagonista despeja tão verborragicamente na tela. Todo clima de felicidade é filmado com uma obviedade jocosa insustentável, toda tentativa de tensão é logo sustada pela recorrência do quadro mais bonito (é desses cineastas que sempre prefere a beleza à justeza), e mesmo quando diante da iminência do terror — um café-da-manhã tranquilo depois de uma batalha noturna, o envolvimento extraconjugal ao som de um tango, a perda de um filho — vale para a câmera o mesmo mandamento dos personagens desesperados por nada. E em Revolutionary Road só há espaço para um medíocre performático de cada vez.

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