sexta-feira, 29 de março de 2024

Tom profético

Olga
 
(tríler,
BRA, 2004),
de Jayme Monjardim.

 


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por Alexandre Werneck
Contracampo/2004

Um efeito narrativo bastante gritante (com duplo sentido, por favor!) marca toda a exibição de Olga: o filme é claramente dividido em dois tempos, que se intercalam obsessivamente no interior das sequências ao longo de toda a projeção. O primeiro deles (embora esta não seja sua ordem de entrada em cena) é o tempo das falas. O outro é o tempo das ações, marcado pela música. Essa composição (que não pode ser chamada de forma alguma de uma oposição) é central para o filme. Pode parecer um traço apenas dramático em um trabalho típico de Jayme Monjardim, um diretor de TV que tem seguidas vezes optado pela explosão emocional em detrimento de qualquer aventura intelectiva. Mas desta vez o emocional dá forma à operação semiológica delicada que marca todo o filme.

Primeiro, por motivos analíticos, o tempo das falas:

Encontramos Olga no filme ainda menina, em Munique, em meio à neve, saltando uma fogueira, e ela dizendo, em resposta aos avisos de seu pai, preocupado com que ela possa se queimar: “Se eu cair, não vou chorar”. Está sentenciado desde aí (e se confirmará) que dali para frente o que se falar no filme será dito em tom monumental, simbólico.

Pois é assim construída a dramaticidade do filme nos diálogos. Os habitantes do mundo de Olga, inclusive ela, falam todos uma língua estranha (universal, a julgar pelo português que, assim como o inglês em vários filmes americanos, é todos os idiomas), uma língua marcada pela retumbância. A sintaxe exige que ao lado de uma palavra importante, entre sempre uma outra tão importante quanto. Todos falam frases grandiosas, significativas e proverbiais. A impressão fica ainda mais forte se as falas são ditas no tom em que são conduzidas pela direção do elenco — e a escolha de Luis Mello para integrá-lo, aliás, diz muito sobre essa opção. Todos se colocam como se dissessem monólogos de Shakespeare, mesmo que estejam dizendo um simples “Bom dia”.

De volta à frase-manifesto da menina, efeito dramático típico, essa citação à infância de um personagem adulto, claro, assume no filme um tom profético. A frase é uma demarcação de posição: Olga não chora. E assim será. É verdade, até o final do filme, ela chorará. Mas a frase, dita no começo, é um estatuto: a regra básica da personagem é seu ascetismo. Voltaremos a este tema. Por enquanto, cabe apenas pensar em como ele apresenta, ao mesmo tempo, o estatuto do roteiro. As falas, além de retumbantes, têm que indicar caminhos no filme: sopra sobre a menina, a moça, a mulher, um presságio. Um espectro ronda o projeto de vida de Olga, e todos parecem já saber disso. Os outros personagens, o tempo todo, ao passarem por ela, dão-lhe avisos.

Agora, o tempo da música:

Este é o efeito mais (como disse antes, com duplo sentido) gritante: nas cenas, quando não há falas, sobe a música. E a gramática é a mesma: se as falas não permitem que haja simplicidade, a trilha sonora, que se dedica às ações, bane definitivamente do universo do filme a discrição. Até os mais simples atos, como subir uma escada ou abrir uma porta, ganham uma pontuação sonora (e, obviamente, emocional) grandiloquente, dramática, de extremos, marcada pelas melodias new-age-sinfônico-pop de Marcus Viana. Sentar-se é tão fantástico quanto executar uma fuga espetacular, nadar é tão impactante quanto entrar em um campo de prisioneiros.

O momento da exibição de A Internacional, claro, ganha um tom especial na história. Apresentada ao final de um discurso da ativista para uma plateia revolucionária inflamada, o hino socialista se transforma na pontuação do treinamento de Olga. Não poderia ser mais simbólico: no treinamento, o socialismo se apodera da moça como um espírito. Aliás, como em uma ironia weberiana em um sistema que remete ao marxismo, ‘espírito’ (claro, entre aspas) é do que se trata no filme.

Isso porque, como se vê (aqui e na tela) os dois tempos (falas e música) são esteticamente distintos e demarcam ritmos distintos ao filme, mas são, os dois, semiologicamente similares. Sem serem opostos, ambos se prestam a construir uma mesma oposição: entre causa e humanidade. Olga não é uma biografia. É uma narração sobre uma construção espiritual. Mas em vez de ser, como Diarios de Motocicleta [2004], uma hagiografia, é ao filme de Walter Salles um espelho, no sentido em que traz a mesma imagem, mas invertida. É uma des-hagiografia, uma biografia de santo ao contrário.

No filme de Salles, Ernesto se torna santo, deixa o mundo, vira São Francisco de Assis no político Che. No filme de Jayme Monjardim, Olga parte da santidade: é assexuada, fria, asceta, estoica, sem carne e se humaniza, “vira mulher”. Essa oposição de imediato já coloca um problema: o de construir o político fora do humano. E com isso, o jogo de palavras vira um jogo de letras: o inumano facilmente se converte em desumano. O que a política faz a Olga é cruel, inadmissível. E é isso que a política (como luta pela transformação do mundo) faz ao homem: desumaniza-o, converte-o em uma entidade desprovida de vida duplamente — no presente pelo ascetismo, e, no futuro, pelo martírio.

A fala inicial da personagem adulta, que diante da janela do campo de concentração proclama: “Amanhã” e reticências, preenchidas pelo título do filme (que é também o nome da personagem) não deixa dúvida: Olga não terá amanhã agora que se humanizou totalmente. Mas com isso, também não tem mais ontem. E o detalhe mais curioso é que ela se humaniza nos trópicos, se humaniza no calor mítico do Brasil. Mais um mito de uma teoria social clássica que o filme reforça: o do Brasil como adoçador de caráter. Pois a equação se torna bastante simples: “o Brasil é o paraíso”, diz a moça. Mas é um paraíso no qual não se pode mais ser santa. Ela tem que se aquecer, deixar-se sucumbir à vida, a negação do político. Pois é, então, também no Brasil que o político é impossível. Aqui, o que se vive é o privado. Por isso, Olga precisa afirmar: “Sou a esposa de Luis Carlos Prestes”. O amor tudo pode, inclusive apagar seu passado, amputar-lhe a santidade.

Olga é construída por essa dicotomia, e por que não dizer, por essa dialética. As inúmeras proclamações dos personagens não deixam dúvida. A fala “Entre um discurso e um salto de para-quedas vai te sobrar pouco tempo para ser mulher” é apenas a face mais canhestra de uma repetida afirmação de um mesmo princípio: Olga é seca demais, inumana demais. Claro, Olga faz parte de uma mesma ordem de filmes brasileiros que despolitizam personagens políticos, como mostra o texto de Eduardo Valente nesta edição. Mas ele faz isso de uma maneira muito particular: sua invenção do não-político é uma construção profética. Nele, pulsa como em nenhum outro filme recente a impossibilidade do político — e sobretudo porque ele o constrói como mitologia, como fala fora da história.

Do sistema estético montado pelo duo falas-música, só se pode, então, concluir: não há lugar para o cotidiano na vida. Afinal, trata-se da “Era das revoluções”. Pois é assim, criando um tempo mítico, um passado épico em que “o sonho era possível” (mas deixando claro que, na verdade, possível ele nunca foi) é que fica decalcado um espaço dramatúrgico cruel: Monjardim não dá nenhuma chance a Olga. Ela parece estar sozinha no mundo desde o primeiro segundo do filme. Nem Prestes é da mesma raça que ela: ele é de carne e osso desde sempre; ele se deixa trair pelos companheiros; ele ama de imediato. Ele acredita na política como gestão do humano, não na política como sina metafísica, como o olhar penetrante de Olga mostra que ela crê (a interpretação de Camila Morgado parece ter sido toda guiada para construir uma mulher asceta e sublimada e seus olhos arregalados, que quase nunca piscam, dão-lhe um tom exageradamente extático).

O que conduz a um raciocínio sobre o uso que o filme faz do sofrimento. A política moderna foi inaugurada como uma economia de olhares. No momento em que se inaugurou a noção de público, inaugurou-se também uma cisão entre aqueles que sofrem e aqueles que veem sofrer e que, por culpa ou não, podem ou não reagir a este sofrimento. O sociólogo francês Luc Boltanski lembra que um dos elementos centrais dessa política é a maneira como se exibem os sofrimentos: pode-se mostrar o sofrimento apontando-se para suas causas e nesse sentido, a exibição é uma denúncia; pode-se exibir esse sofrimento de maneira sentimental, apontando mais para a tristeza de uma condição humana do que para uma problemática política; mas também se pode exibir o sofrimento como sublimação, como ato de valoração do próprio humano e, nesse sentido, como sina e como inevitável. E é esse o elemento central em Olga: o jogo de falas e músicas de Monjardim cria um tom de sublimação para todo o sofrimento e toda luta. Este é o grande papel da música onipresente.

Tudo isso transfere o projeto político para o plano do fantasioso, do romântico. Ele é aquela entidade produzida epicamente, na forma do romance, do romântico, do pior sentido do termo utopia, aquilo que não se realiza senão na fantasia. A realidade é diferente: é a traição dos companheiros, é a deslealdade dos oponentes, é a desumanidade dos inimigos. E é a inexorabilidade do capitalismo.

Claro, há o argumento de que aí o que conta é fato histórico: o projeto comunista (o de Olga) não deu certo. Mas não se trata de história, trata-se de semiologia. Olga constrói sua narrativa como se profecia fosse, como se nos olhos (que não piscam) de Olga estivesse impresso o final da história. Porque não há outro final possível, porque não se trata daquela saga, mas de outra: a do aproveitamento de uma personagem singular como personagem genérica. A operação mais estranha do filme de Monjardim (e que o aproxima mais da TV do que as dimensões da filmagem) é a de tentar fazer Olga se encaixar nesse clichê da mulher de pedra. Para fazê-lo, elemento recorrente de teledramaturgia, ele converte a fórceps os elementos que a cercam em conspiração contra a felicidade. Olga só é feliz quando ama — como se o amor fosse incompatível com a solidariedade. Mas Olga não é feliz apenas quando se deixa ser mulher, mas quando passa a ser uma mulher específica, a de um modelo celebrado como heroína habitual da televisão. Assim, desaparecem nuances e desaparece uma personagem e vem à tona apenas o que se quer fazer com ela: oferecer doses cavalares (com trocadilho, de novo) de emoção. Neste caso, às custas da própria personagem.

* * *

Corta para Moscou. Olga se dirige a um encontro com um líder soviético, que lhe dará uma missão. Em breve, veremos, ela será apresentada a Prestes. Antes disso, entretanto, ela entra no prédio. É a União Soviética. As filmagens, feitas no Rio, utilizaram as escadarias do prédio do Ministério da Fazenda. Ao atravessá-las, Olga passa por mal-disfarçado (pela cenografia) brasão das armas nacionais (brasileiras).

Essa cena, que poderia servir como ponto de partida para um debate sobre a imposição da ideia de um cinema “de qualidade” no Brasil um debate a ser travado diante de Olga, uma das mais mal-sucedidas tentativas de afirmação desse “gênero” já feitas no país, não deixa de ser simbólica: a União Soviética do filme é aqui. O lugar em que o político está fadado a matar Olga é aqui. O lugar em que o político está fadado a morrer, parece, é aqui.

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