segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Missão familista

Saving Private Ryan
 
(tríler,
USA, 1998),
de Steven Spielberg.

 


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por Ruy Gardnier

Saving Private Ryan: mais um filme de Steven Spielberg. O que quer dizer: mais uma vez a comunidade inteira do cinema se congrega para dizer que Spielberg é o melhor diretor disso, melhor diretor daquilo. Que as imagens de guerra nunca foram tão impressionantes, que o espectador sente-se entrando na guerra. No caso de Saving Private Ryan, há alguns juízos corretos. É verdade, por exemplo, que a representação da guerra jamais foi tão equipada de efeitos visuais e dublês de modo a ilustrar “perfeitamente” os horrores da guerra. O que talvez seja o maior problema, dentre vários outros, de Spielberg: ele vê o métier do diretor tal qual o economista de hoje vê o seu métier — algo desprovido de ética, de moral, onde apenas o que conta é a competência para levar a diante tal projeto.

Saving Private Ryan nos aparece antes de tudo como um apelo aos mortos. Vemos um senhor, os olhos verdes, acompanhado de toda a família, num enorme cemitério de vítimas da Segunda Guerra Mundial. Ele para diante de uma sepultura e começa a chorar. Um close em seus olhos vai nos guiar, de um personagem que já viveu aquilo tudo (e nisso a narrativa nos remete ao Titanic [1997] de James Cameron), para a sua história da guerra, para o que ele viveu. Num corte brusco, passamos a ver o desembarque americano na Normandia, episódio dos mais sangrentos da Guerra. Spielberg nos faz ver isso claramente. Com uma câmera tremida, aquisição proveniente dos filmes de Fuller e dos “novos” diretores de Hong Kong, Spielberg nos mostra o sujeito perdendo o braço e voltando para procurá-lo, a cabeça que se separa do corpo, os amputados, e sobretudo os olhos do Capitão Miller. É esse capitão Miller que, depois do desembarque, será incumbido de liderar sete homens para encontrar o soldado Ryan, único filho ainda vivo da sra. Ryan, de Yowa. A história do filme será o percurso e os problemas enfrentados pelo grupo para achar Ryan.

A história para Spielberg sempre tem um papel fundamental. Cineasta ISO 9000 que é, tudo deve ter seu lugar milimetricamente programado no relato: momentos para piadas, outros para melodrama, etc. Nesses dois tipos de clichês é onde encontramos os dois lados mais repugnantes de Saving Private Ryan. Numa cena de batalha, vemos um soldado ser alvejado no capacete. Vemos ele tirar o capacete, como que para agradecê-lo. E, do nada, uma bala atinge ele no mesmo lugar, agora sem a cobertura, e o soldado morre. Em outro momento, exatamente a 1h de filme, o esquadrão encontra um soldado Ryan. O Capitão o informa da morte de seus irmãos, ao que vemos primeiro o choro do soldado, e depois a lembrança de que eles ainda eram crianças, que não tinham nem quinze anos. Acoplado a essa infâmia desastrosa — e que, aliás, se repete em todos os filmes de Spielberg —, vemos também o melodrama barato ser elevado a uma instância metafísica. A situação em que o pai francês entrega a filha à equipe de resgate para que ela seja salva é de um mau gosto impressionante. Essa sequência termina com o acerto de contas da filha, que dá diversos tabefes no pai. O espectador sente a vontade de fazer o mesmo com quem lhe mostrou essa cena.

Saving Private Ryan é a realização máxima de Steven Spielberg. Nela, todas as suas características são levadas a extremos de competência técnica e narrativa. As cenas de batalha, devidamente copiadas de Samuel Fuller, Sam Peckinpah, John Woo, Tsui Hark e até de Quentin Tarantino, jamais tiveram nas mãos um artesão tão empenhado em fazer a reconstituição. Mas ninguém se engane com esse desejo de realismo em Spielberg: não se trata de um realismo, mas de um naturalismo. O propósito estético não está em nada vinculado a um qualquer desejo ético, de direita ou de esquerda. Está simplesmente associado ao entretenimento, esse grande desconhecido que não tem cara, não tem características, só rende divisas. E é a esse desconhecido que Spielberg paga seu tributo anual, seja em filmes ditos mais sérios (Schindler's List [1993]) ou em filmes de diversão (Jurassic Park [1993]). O entretenimento em Spielberg é a desculpa para contar apenas uma história, como se esse apenas uma história não estivesse vinculado de primeira a uma moral que o elege como modelo de vida.

Spielberg é o homem da competência por excelência. É o único que faz melhor. É também um grande cara-de-pau. Pois só ele é capaz de colocar o velho Ryan diante de um cemitério, com sua família, perguntando à sepultura do Capitão Miller se ele havia merecido ser a missão de oito homens, se ele mereceu continuar vivendo. Depois ele pergunta para a mulher, ao que a câmera faz aparecer sua família. Se Spielberg tem um estilo próprio, o espectador não vai encontrá-lo nem na narrativa, nem nos movimentos de câmera, nem nos personagens, mas no sentido de mercado de seus filmes. E, claro, na filigrana de seus filmes, que são todos um grande elogio da classe média como um todo. Só ter feito família já quer dizer que valeu a pena ele ter vivido, nos diz Spielberg. E o espectador sai contente de ser um nada, pelo menos uma família ele vai construir. Pouco importa o sentido dessa família, já é alguma coisa. É nesse sentido que Steven Spielberg é magnanimamente um conservador, o anti-Coen, o anti-Altman, o anti-Waters.

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