sexta-feira, 31 de março de 2023

Bomba atômica

Pearl Harbor

(
tríler,
USA, 2001),
de Michael Bay.



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por Felipe Bragança

Chamar um filme como Pearl Harbor de “cinemão americano” pode parecer o mais retumbante clichê por parte de um crítico, pode parecer um grande simplismo barato, recalque diante das montanhas de dinheiro gastas e ganhas com apenas um melodrama de guerra — mas isso só acontece se o clichê de “cinemão” for automaticamente visto como pejorativo, automaticamente associado ao status de “lixo” cultural.

Se Pearl Harbor fosse um “lixo”, felizes seríamos nós, brasileiros que se interessam por cinema, pois não teríamos que abrir o jornal e ver o enorme pergaminho listando as inúmeras salas de cinema que exibem o dito cujo explosivo... O problema é justamente esse: descontadas as pressões político-econômicas das todas-poderosas distribuidoras internacionais, essa porcaria de filme que se chama Pearl Harbor é um grande e inteligente filme.

Grandiosidade não é nenhuma novidade seja no âmbito geral do cinema de Hollywood, seja na obra específica de Bay (ele dirigiu o Armageddon [1998], lembram?) — explosões por todos os lados, sequências que custam mais do que o PIB de pequenos países africanos, som hiper-ultra-digital, três horas de projeção... É, tamanho por tamanho, o elefante branco norte-americano é mesmo dos maiores. Mas, seja essa tamanha jamanta de clichês, por que será que não se foge de um filme como esse como se fugiu de um fracasso como, por exemplo, Cutthroat Island [1995] (que faliu a produtora Carolco — responsável por sucessos como RoboCop [1987])?

Não se foge porque a porcaria do filme é muito mais do que um filme de aventuras e pura diversão — pelo contrário, é meticuloso no estabelecimento de seus personagens e em sua redenção histórica diante do episódio de Pearl Harbor. Bay conseguiu transformar uma tragédia numa grande fantasia em torno da guerra, soube como poucos mostrar a suposta fragilidade dos EUA (“país de playboys”) como forma de bajular a força do “gigante adormecido” (fala do general japonês no filme) que acordava para conquistar o mundo.

Todo o filme trabalha com essa ferramenta — seja o presidente americano encerrado numa cadeira de rodas e que consegue se erguer para dar a ordem de ataque, seja no personagem do canastrão Ben Afleck que quer ser herói apesar de sua deficiência de aprendizado, ou em seu amigo mal-tratado pelo pai enlouquecido... O filme todo é assim estruturado: começa-se por baixo, em desvantagem... mas com uma vontade e uma força advinda não se sabe de onde, ergue-se o prumo e ruma-se à glória da vitória. Costurando as histórias pessoais com essa espécie de tese da genealogia da hegemonia estadunidense, o filme consegue fazer do próprio país EUA um personagem que, apesar de começar acanhado e perdedor, dá a volta por cima...

Ora, ora, um filme que consegue transformar o gigantesco império americano num personagem oprimido e frágil (o ataque dos 16 aviões na sequência final consegue transformar os EUA em David diante do Golias japonês) que se levanta e se impõe ao mundo por seus valores pessoais, merece atenção. Diferentemente de seu filme anterior, onde fazia a fragilidade dos EUA surgir de um imponderável Asteróide em rota de colisão, em seu novo filme, Bay transforma os EUA historicamente em vítimas que souberam vencer os desafios... O gigante americano imaginado pelo general japonês é apenas insinuado pelo filme que termina com letreiros que praticamente dizem: “...e desde então viveram felizes para sempre e conquistaram o mundo!”. O filme é ruim, o filme é estúpido? Não creio — é uma gigantesca esperteza transformar um país em guerra numa espécie de personagem de melodrama, em herói romântico em busca de sua honra perdida.

Carregando em interpretações caricatas e em diálogos melosos, o filme tenta trabalhar com uma espécie de sinceridade histórica e um cinismo absurdos — os inimigos japoneses são tratados com respeito, com seriedade — admite-se o erro americano que permitiu o ataque nipônico... Mas de que forma? Usando isso justamente para provar o quão valorosos eram os inimigos derrotados e o quão necessária era a virada dos EUA da passividade para a ação na guerra. Em certo momento do filme o general japonês manda outra pérola, após ter sido elogiado por sua inteligência: “Um homem inteligente não precisaria fazer uma guerra”. Até nisso o filme é eficaz, fazendo-se de politicamente correto faz de tudo para taxar a guerra como um erro ao qual os EUA tiveram de se expor para defender sua própria integridade... Um erro necessário para defender o bem-estar das famílias norte-americanas, e seu modo de vida pacato. Algo como: “nós só queríamos ficar aqui vivendo nosso american way, mas vocês vieram nos atazanar a vida... deu nisso!”.

Um filme muito mais perigoso e ideologicamente ativo do que apenas um “lixo” da cultura fast-food — um filme perigoso justamente por esse certo tom de fábula que termina com o “felizes para sempre...” Como que fechando um ciclo ali, cristalizando o domínio norte-americano como essa felicidade dos contos de fada que se estendem pelas reticências...

Um grande e odioso filme, uma ferramenta política poderosa. Uma bomba.

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