quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Memória realista

 Total Recall

(folhetim,
USA, 1990),
de Paul Verhoeven.



por Paulo Ayres
 
Antes da cultura pop fazer mensagens motivacionais e memes sobre a red pill de Morpheus — The Matrix (1999), um drama edificante que também fala sobre diferentes níveis de realidade —, Douglas Quaid (Arnold Schwarzenegger) cospe a pílula no cadáver do autoproclamado guia que prometia despertá-lo. Trata-se de Total Recall, em que não há uma resposta definitiva na trama se o percurso frenético que acompanhamos, da empresa Rekall ao céu azul marciano, foi real ou uma ilusão. Antes dos créditos finais do folhetim, há um fade to white. Uma luminosidade discreta, mas com uma baita ironia. Tudo foi mero escapismo ou uma profunda revolução política? Não importa. Da maneira como o roteiro (baseado num conto de Philip K. Dick) foi bem construído através de seus vários tratamentos, as duas leituras formam uma dialética. No mínimo, um devaneio que virou mais que a versão autocentrada do “conhece a ti mesmo”: virou consciência de classe.
 
É o segundo filme de Paul Verhoeven feito integralmente em Hollywood e, também, a sua segunda sátira realista com material de ficção científica. Uma conquista considerável do cineasta holandês, ainda que a putrefação reluzente de RoboCop (1987) tenha um nível maior de concretude ao refletir as determinações sociais numa Detroit levemente incrementada. Total Recall, por outro lado, além de desembestar no comentado clima onírico, joga o enredo para um 2084, que, se não tem os carros voadores, tem até turismo interplanetário tratado como rotina. Uma abstração maior, é verdade, mas ainda com os pés no chão — é na abstração mais ampla de Starship Troopers (1997) que a ousadia de Verhoeven se intensifica ao mesmo tempo que a metáfora fica diluída. Na contramão dessa tendência, o remake (2012) de Total Recall se apresenta numa pretensiosa encenação trileresca e inclinado a discorrer sobre a tecnologia na esfera da produção material. A boa intenção sucumbe perante o grau maior de sutileza que um drama exige.
 
No entanto, por mais que em Total Recall haja uma abstração psicologizante, Verhoeven faz questão de pesar a mão na arquitetura brutalista e na narrativa truculenta. Nessa produção dispendiosa, a brutalidade está no estilo visual e no ritmo alucinado. Os efeitos especiais são pitorescos e os que se destacam são protéticos e animatrônicos. A reação orgânica ao nocivo ar marciano, por exemplo, simboliza a proposta de humor em que a corporeidade tem um papel central na sátira. A velocidade  também. Vide o processo de terraformação atmosférica ocorrendo em poucos minutos. Até lá, corpos ficam pelo caminho, alguns com um tiro na testa, as situações sobrevêm. O impacto é maior na cena em que um figurante inocente é fuzilado no metrô. Logo se mostra como um ritual irônico em que cada um dos bad guys também vai perecer gradualmente, inclusive Vilos Cohaagen (Ronny Cox), que surge como o último chefão na fase mais alta, após uma subida de elevador. Poderia ser apenas violência gráfica em um típico filme de agente secreto imperialista, mas não é: junto com o acúmulo vertiginoso de massacres e destruições, há a exposição de colonialismo, segregação e resistência armada. Total Recall toma o lado dos oprimidos. Num folhetim ao estilo de James Bond, Kuato seria um dos vilões.
 
Em linhas gerais, Quaid, um operário de construção, faz um percurso à la Alice de Alice's Adventures in Wonderland (1865), mas que não é unilateralmente para um mundo da fantasia, do entretenimento e do pacote de férias (mentais), mas sim, simultaneamente, para a vivência do que está nos bastidores da aparente normalidade da vida cotidiana na sociedade burguesa. As hesitações referentes à memória e à identidade singular indicam também uma questão de consciência social. Com isso, o mundinho chato de Quaid desaba e o mais interessante: não deixou de ser ele mesmo de forma absoluta, apenas elevou a sua visão de mundo. A identidade Hauser pensou ser mais esperta que a identidade Quaid, mas essa última se desenvolve e cria uma consciência revolucionária e, em pouco tempo, está participando, como ponta de lança, de um grupo de rebeldes em um mundo distante. Nesse sentido, é curioso que a equipe de Verhoeven foi filmar no México. Marte, nesse space feuilleton, é um retrato terceiro-mundista em contexto colonial, espetáculo para turistas e inferno para a camada precária e superexplorada da classe trabalhadora, especialmente na mineração. É a chamada colonização espacial reproduzindo a colonização capitalista.
 
Em suma, o que antes foi visto de forma distanciada no telejornal por Quaid, num café da manhã cotidiano — o movimento anticolonial em intensas lutas de classes —, torna-se o seu novo propósito de vida. E tudo isso de maneira em que o caminho fenomênico da distração, da recreação, seja, dialeticamente, o do essencial despertar.
 
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Lista de sci-fi feuilleton no subgênero space fiction:
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