quarta-feira, 15 de março de 2023

Publicidade realista

They Live 

(folhetim,
USA, 1988),
de John Carpenter.
 
 

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por Bruno Andrade

As primeiras cenas de They Live não nos são estranhas: grandes prédios, anúncios publicitários, outdoors, constante movimento de massas, miséria e marginalidade. Enfim, todos os signos que caracterizam e preenchem qualquer cidade grande se fazem presentes. Mas o senso narrativo da direção de John Carpenter obviamente pedirá algo mais destas imagens, e não precisamos de muito tempo para termos sua sobriedade cênica revelada neste início de filme: não apenas um universo é estabelecido (uma metrópole), mas também o papel assumido pelo personagem principal dentro deste universo (um andarilho em busca de emprego) e a natureza deste personagem (um trabalhador braçal em busca de qualquer oportunidade de trabalho nas cidades por onde passa).

Trata-se de um filme de John Carpenter e deste fato poucas dúvidas restarão. Vários elementos característicos de sua obra poderão ser encontrados e se tornarão reconhecíveis rapidamente e sem muitos pormenores: os outsiders, uma cidade abrigando uma enorme quantidade de excluídos, um sentimento inconformista que dará a impressão de estar prestes a explodir em algo que não sabemos bem o que é, as inquirições tão próprias que seu cinema realiza sobre sociedade, o papel do indivíduo nesta e como ambos se relacionam etc.

Vemos que está tudo aqui, é uma obra autoral, retornamos aos velhos temas e ao modelo da “direção invisível” que caracteriza o diretor...; enfim, mais um trabalho que expande o “corpo de trabalho” deste cineasta. Todavia parece mais interessante no caso de They Live perguntar sob quais condições o filme amplia a obra de Carpenter do que simplesmente perceber e apontar a existência de uma função carpenteriana.

Ao analisarmos a porção inicial da carreira de Carpenter, diversas vezes esbarramos em momentos onde sua encenação transforma a própria representação cinematográfica em objeto de problematização. Tomemos, por exemplo, o clássico plano inicial de Halloween [1978]: como bem aponta a crítica de Fernando Veríssimo, “... um plano-sequência no qual, sob o ponto de vista do assassino, somos compelidos a testemunhar/executar um assassinato”. Tal utilização deste tipo de recurso se repetirá em pelo menos dois outros filmes deste período, The Fog [1980] e Christine [1983]. Mas obviamente não é apenas por meio do domínio técnico que o cineasta levanta seus questionamentos referentes a este mecanismo de identificação tão natural ao cinema: a temática da possessão, dividida por The Thing [1982] e Starman [1984], abre espaço para indagações das mais diversas relacionadas às interpretações que ambos os filmes possibilitam.

E é assim que adentramos um terreno inesgotável, uma vez que They Live é facilmente identificável como uma das obras mais vastas do diretor entre as que abordam diretamente a imagem. Não é nenhuma coincidência este ser um dos mais politizados trabalhos de Carpenter, pois ao passo que trabalha com temas e subtemas de natureza político-econômica (a quase todo momento nos deparamos com comentários dos mais pertinentes, quando não hilariantes, acerca dos efeitos da Era Reagan na sociedade americana), é a própria função política da imagem que será dissecada pela sua direção.

Retornemos, pois, ao início... Retornemos aos outdoors, aos anúncios publicitários... Retornemos à entrada em cena do andarilho/proletário (creditado apenas como “Nada”), à sua chegada naquela que imediatamente reconhecemos como metrópole. A princípio aceitamos a imagem por aquilo que ela aparenta ser mas necessariamente desconfiamos de algo, pois o protagonista divide conosco — como a câmera no já referido prólogo de Halloween — a função de espectador, uma vez que, como nós, é um recém-chegado a este universo. E é desta forma que com ele estranhamos o descontrole patente daqueles que frequentam a igreja próxima do abrigo comunitário onde passa suas noites; estranhamos mensagens subliminares em televisões; estranhamos o fato de testemunharmos constantemente a situação miserável de grande parcela da população e, no entanto, sermos rodeados pelo reflexo de um sucesso e um exagero consumista que não se fazem presentes no espaço decadente com o qual nos deparamos. O controle que Carpenter exibe sobre este material é nada menos que assustador: à medida que Nada passa a desconfiar daquilo que o cerca, que percebe algo de muito estranho ocorrendo ao seu redor, somos tirados da cômoda posição que ocupamos de espectadores e assumimos, tal qual o protagonista, o papel de investigadores.

Menos estranho não é o momento em que, junto com Nada, colocamos óculos escuros e descobrimos tudo aquilo que anúncios de revistas, campanhas publicitárias e programas televisivos ocultam: uma overdose de mensagens de conteúdos dos mais ditatoriais e autoritários (“submeta-se”, “continue dormindo”, “consuma”, “não pense”, “assista TV” e, talvez o mais genial de todos, “este é seu Deus” ao mostrar um punhado de dólares nas mãos de um vendedor). Mas maior será nossa surpresa quando temos revelado aquele que é, com certeza, o mais inusitado contorno que Carpenter imprime ao seu roteiro (assinado com o pseudônimo “Frank Armitage”): a existência de alienígenas que, sob a falsa aparência de seres humanos, estão a concretizar uma invasão de natureza social e econômica que se dá por meio do controle daqueles humanos que almejam o sucesso exibido nos anúncios publicitários (de autoria, não por acaso, dos tais alienígenas).

Nos deparamos com a quase completa desconstrução de um mundo que aos nossos olhos se fez real durante toda a primeira metade do filme, justamente aquela em que Carpenter trata de uma importante vertente de sua obra e propriamente aquela que se faz necessária no início: o embate presente na relação entre indivíduo e sociedade. A descoberta de uma diferente realidade determina uma nova possibilidade de mundo para Nada e de imagem para nós (através da utilização dos óculos escuros no caso de Nada e no nosso caso por meio da apreciação e reflexão da imagem cinematográfica), e será a partir deste novo cenário que Nada traçará novos rumos referentes ao papel que ocupa como indivíduo (primeiramente quando se dá a liberdade de eliminar os alienígenas, posteriormente ao se juntar a um grupo de resistência humana) e que nós passaremos a pôr em xeque os diversos desdobramentos que a interpretação de uma imagem — qualquer uma — estabelece.

Seria errada e falsa qualquer tentativa de transformar Carpenter em herói. Se por um lado ele se importa com seus personagens, tenta compreendê-los dentro dos limites de cada um (o colega de Nada que possui uma família, o padre que sai a pregar pelas ruas clamando a revolta e a indignação das camadas mais baixas da sociedade), por outro ele não tomará a posição de piedoso observador, não passará as mãos nas cabecinhas de seus marginais e não manterá nenhum de seus personagens nas posições de recalcados, miseráveis ou fracassados. Carpenter pede de seu protagonista tanto quanto do espectador uma atitude, e se esta se institui pela anarquia de mandar tudo às favas e partir para a guerra como Nada, ou pela participação do espectador na pesquisa empreendida por seu cinema a respeito das acepções que a imagem adquire, pouco importa: um posicionamento precisará ser adotado.

É com They Live que Carpenter passa a integrar o panteão destes raros artistas (pensemos em Godard, Welles, Lang, Eastwood, De Palma, Kiarostami, Argento e Resnais) que, partindo do movimento da imagem, transformam a própria no ponto convergente de suas investigações, e mesmo que nos direcionamentos e propósitos as pesquisas destes senhores tomem os rumos mais ecléticos imagináveis o que se torna importante é o fato de termos um cinema que ponha em dúvida os méritos de suas próprias leis e estatutos... e que, por tais razões, talvez seja o maior de todos os cinemas: aquele que evoca o pensamento a seu respeito.

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