The Matrix
(tríler,
USA/AUS, 1999),
de Lana e Lilly Wachowski.
por Paulo Ayres
Retornar ao primeiro The Matrix é uma experiência gratificante, pois oferece uma oportunidade de reflexão sobre os seus próprios desdobramentos. O filme cultuado se notabilizou como uma espécie de adaptação pop da Alegoria da Caverna, de Platão, numa versão bruta e gameficada, pronta para ser usada por professores de filosofia do ensino médio e para arrebanhar fãs de mais uma mitologia contemporânea. Dessa vez, há a pose de estar refletindo sobre as questões existenciais mais profundas, em meio à matança fetichizada e entre os tentáculos que a franquia gera como fonte de energia para grandes empresas. O interessante no célebre techno-thriller de Lana Wachowski e Lilly Wachowski — a identidade trans das cineastas afirmada anos depois — é menos a enfadonha ideia de predestinação, cujo determinismo será problematizado “cientificamente” nas sequências, e é mais a jornada deslumbrante de reflexão sobre a imagem e a autoimagem.
The Matrix é um drama edificante que segue uma cartilha de romantização com diálogos curtos e frases de efeito. Sua especificidade é dar um tom misterioso e professoral para boa parte dessas frases de efeito, fazendo um tipo de aula com o espectador, que será “despertado” gradualmente junto com o programador Thomas A. Anderson (Keanu Reaves). O fio condutor de alusões passa por Bíblia, Alice's Adventures in Wonderland (1865), Neuromancer (1984), Ghost in the Shell (1995), entre outras referências. Um livro do filósofo irracionalista Jean Baudrillard aparece numa cena inicial no quarto de Neo — o próprio teórico francês, que teve seu nome mais difundido graças ao filme, argumentaria que não foi compreendido em suas ideias, o que é algo positivo para o tríler, pois aqui há uma fome ontológica de real ausente no agnosticismo niilista. Por outro lado, o anticapitalismo da alegoria está tão abstrato (como o do pós-estruturalismo) que até mesmo românticos de direita, isto é, conservadores e fascistas, fazem desse universo ficcional parte da sua cultura na crítica ao mundo moderno — para o repúdio das autoras, que são progressistas.
Se Terminator II (1991), no início da década de 1990, indica uma nova era de possibilidades maleáveis na figura líquida e intrusa do exterminador T-1000, The Matrix, no final da mesma década, esparrama tal movimento por todo o ambiente. Os vilões perseguidores aqui, com destaque para o Agente Smith (Hugo Weaving), tornam-se quase onipresentes, sombras que se espelham em corpos, pois todo mundo que não está desplugado é um potencial agente de conservação e controle nesse mundo de tonalidade esverdeada (fotografia de Bill Pope). O roteiro das irmãs Wachowski, nesse sentido, funciona por atos e a primeira parte é praticamente uma cerimônia de introdução do protagonista — e do espectador, por tabela —, indicando um distanciamento metafórico do sistema (capitalista) enquanto sistema de domínio das coisas sobre o humano. Ainda que sejam intensas, há uma certa moderação cotidiana nas revelações sobre o mundo digital e a escura distopia. Assim sendo, o recente longa, The Matrix Resurrections (2021),
é uma inteligente reciclagem do filme original: as primeiras partes do
primeiro e quarto filmes são os melhores momentos da série. Comparando com as duas sequências de 2003 (The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions), nota-se como a referência à vida cotidiana e o clima de mistério e conspiração fazem falta no segundo e terceiro dramas; havendo uma ênfase nos excessos, na mitologia voltada a si mesma, no nível épico de universo paralelo em guerra, salientando a pouca profundidade da estrutura maniqueísta. No primeiro The Matrix, diferentemente, estamos descobrindo e processando as informações junto ao “the One” em ontological shock e recém-chegado ao suposto mundo real de fotografia azulada. Depois da traição e da morte do judas (Cypher feito por Joe Pantoliano), o messias, já autoconfiante em sua missão de salvador, toma as rédeas da situação no último ato. O momento espalhafatoso do frenesi, da vertigem, de coreografia em câmera lenta em meio a fragmentos de paredes destroçadas e balas cortando o ar. A pose cool do casal, com sobretudos pretos e armados até os dentes, o bullet time quase como um ritual religioso no topo do edifício. Sem perder a sua fundamentação de ficção científica, o filme se cobre de certa aura de religiosidade esotérica, mesmo em seu momento de empolgação violenta.
O celular banana da Nokia, visto mais de duas décadas depois, para além de um charme retrô, é a sinalização de que a dinâmica da obsolescência invade até o espaço da simulação dita no enredo. The Matrix é uma alegoria do fetiche da mercadoria e da coisificação que carrega aquilo que Morpheus (Laurence Fishburne) diz para Neo quando, num fundo totalmente branco, lhe apresentará o “deserto do real”: uma autoimagem residual. Essa obra foi cuidadosamente lapidada pelas Wachowskis em seu planejamento e execução. Cada enquadramento, cada filosofada, cada cenário que parece se dobrar ou espatifar diante das personagens — a direção de arte da metrópole também tem um exagero instigante para um drama —, enfim, cada detalhe cria uma identidade audiovisual chamativa para servir tanto aos seus desdobramentos narrativos quanto mercadológicos, enquanto franquia. Como objeto estético é um reflexo, mas também trata de reflexos na sua temática sobre a relação entre essência e aparência, e, ademais, se serve de reflexos artificiais enquanto componentes narrativos — vide o espelhamento em óculos escuros, no retrovisor da moto de Trinity (Carrie-Anne Moss), na colher do garotinho branco vestido como um monge budista, no vidro do banco traseiro do carro... O primeiro The Matrix traduz bem um clima de incerteza sobre como a gente se vê, como somos vistos, e como imaginamos sermos vistos. E isso diz mais que o protocolo, coexistente, de “filme de ação” com deslocamento mecânico e respostas banais.
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Lista de sci-fi thriller no subgênero techno-fiction:
[0] Primeiro tratamento: 23/12/2021.
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