quinta-feira, 2 de maio de 2024

Sonho lúcido

Abre los Ojos

(tríler,
ESP/FRA/ITA, 1997),
de Alejandro Amenábar.
 

 
= = =
por Ruy Gardnier

Abre los Ojos tem várias possíveis motivações para ser assistido. A mais óbvia é a de que nessa mesma semana estreia a refilmagem americana com Tom Cruise no papel inicial, Vanilla Sky [2001]. Uma outra é o sucesso e as nominações que recebeu o belo The Others [2001], do mesmo diretor em sua primeira aventura hollywoodiana. Pois bem, sejam quaisquer que sejam os principais motivos para se ver um filme, um deveria se sobrepor aos outros: Alejandro Amenábar é um diretor talentoso.

Desde o começo, um gosto indisfarçado pelo classicismo: uma viagem de carro nos remonta para certas metáforas daquilo que depois acontecerá no filme (como Hitchcock em The Wrong Man [1956]), referências estilísticas (Le Fantôme de l'Opéra [1909], L'Homme au Masque de Fer [1847]), mas acima de tudo uma preocupação pouco comum numa nova geração de cineastas francamente maneirista (pensemos em Baz Luhrmann ou Wes Anderson): apenas contar sua história da maneira mais visualmente eficaz possível. Claro que aqui não se faz apologia da narrativa como única maneira de se fazer bom cinema, mas como algo que parece esquecido das telas de hoje, onde os verdadeiros artistas são autores, ou seja, donos de um universo que é mais importante do que a própria história a ser contada, e os apologetas da narrativa são simplesmente pueris, de interesse puramente (ou majoritariamente) comercial e nada criativos na forma com que encenam e montam seus filmes.

Nesse modelo, uma antiga forma de fazer cinema, muito cara ao amante da arte cinematográfica, fica à deriva: o cinema de artesão. É nesse nicho que Alejandro Amenábar vem se inscrever no panorama do cinema contemporâneo recente. Vejam-se os primeiros trinta minutos de Abre los Ojos para se notar um trabalho muito bem realizado, onde a criação de climas é a iniciativa predominante do diretor. E já aí uma diferença gritante entre os novos realizadores: Amenábar sabe que cinema é eminentemente uma arte visual, e é mestre justamente nessa modalidade, ao contrário dos amantes de um cinema-de-roteiro tão recentemente propalado e simplesmente inócuo e vazio (pensemos no argentino Nueve Reinas [2000] ou no ignóbil Memento [2000] de Christopher Nolan). Pois em Abre los Ojos, por mais que o roteiro seja importante e a narratividade ocupe um lugar muito especial (como em todo cinema clássico de artesanato), Amenábar sabe que cinema se resolve na tela.

Uma mesma frase povoa o filme: “abra os olhos”. Começa, entremeia e termina, com uma tela preta que a acompanha. Quando ele finalmente acorda, é César, um jovem bem-sucedido, invejavelmente belo, um don juan que tem por reputação jamais dormir com uma mulher por mais de uma vez. Uma espécie de homem dos sonhos do imaginário macho, pois. Só que os sonhos se transformam em pesadelos, e uma dessas mulheres, Nuria (a belíssima e polar Nájwa Nimri) passa a persegui-lo no dia de seu aniversário. Para fugir dela, César começa a conversar com Sofia (a também insinuante e cálida Penélope Cruz) — por quem seu maior amigo, Pelayo, está apaixonado —, e depois de uma noite em claro na casa dela, acaba se enamorando, e a ação é recíproca. Isso tudo nos é contado num flashback. No período presente, César está com o rosto aparentemente inutilizado (ele o esconde com uma máscara) e conta sua história para um médico, dentro de uma cela num hospital psiquiátrico — teve seu rosto deformado por uma batida de carro que vitimara Nuria e, meses depois, cometera um assassinato por influência de delírios visuais.

Esses delírios são as linhas mestras pelas quais o filme evolui. Abre los Ojos vai aos poucos envolvendo o espectador numa rede onde sonho e realidade, onde plausibilidade e implausibilidade coexistem numa mesma lógica, em que César é incapaz de saber se está sonhando ou em vigília — ou apenas tem surtos delirantes. Isso nos remete a dois filmes recentes razoavelmente aparentados: o já mencionado Memento e um filme de David Fincher, The Game [1997]. Nos dois, há a dúvida se a verdade é aquilo mesmo que está simplesmente sendo visto ou uma realidade que escapa aos olhos do protagonista. Em todo caso, é uma aventura, ou melhor: a vida é vivida como uma historinha de videogame, como um jogo de imaginação (detalhes futuros mostrarão como o personagem de Abre los Ojos pode estar vivendo um sonho atrás de outro). Só que Amenábar tem uma dupla vitória sobre esses dois filmes: a primeira é que realmente sabe filmar muito melhor, e sem o ranço (improcedente) de enfant terrible que esses outros dois diretores sustentam. A outra diz respeito à própria narrativa: a verdade final, finalmente encontrada em Memento ou The Game (quando fica claro ao final o que é o quê), até existe, mas não como complô (em Fincher) ou pura montagem autoconsciente e complacente de memórias (em Nolan). Com Abre los Ojos, o protagonista (e o espectador junto com ele) finalmente se coloca em xeque, e há antagonismo moral e um sentimento estético que dele decorre.

Mas o amor à narrativa não esconde uma certa insuficiência. Como em The Others, deve haver o momento explicativo: para aqueles que não entenderam, o filme trata de explicar-se ponto a ponto nos últimos minutos de projeção. Isso dá imediatamente a desagradável sensação de que estamos viajando com um guia por demais cioso de zelar por nossos passos. Esse zelo pode se transformar em controle, e o viajante simultaneamente sente que a viagem não é mais sua. Tanto pior quando Abre los Ojos por momentos parece delegar essa liberdade ao espectador (e Memento também). Amenábar ama seu filme, mas não a ponto de entregar a verdadeira experiência de seu personagem à pessoa que vê o filme. Resulta uma viagem muito interessante, mas quase o tempo inteiro dentro de um ônibus, onde se contempla lugares muito bonitos. Se se procura uma genuína experiência, no entanto, a saída é dirigir-se a eXistenZ [1999] (Cronenberg) ou Mulholland Drive [2001] (Lynch), esses sim filmes onde é proibido apertar os cintos de segurança.

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