domingo, 28 de julho de 2024

Resistência mecânica

Bacurau
 
(tríler,
BRA/FRA, 2019),
de Kleber Mendonça Filho
e Juliano Dornelles.
 


por Paulo Ayres

Assim como Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), Bacurau foi um filme-acontecimento no cinema brasileiro com repercussão internacional; e todas essas obras podem ser classificadas da maneira que o crítico Pedro Henrique Ferreira, na revista Cinética, classificou o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: “é muito menos um grande filme e muito mais um grande fenômeno cinematográfico”. Isso significa reconhecer que um “clássico” pode ser no sentido de uma obra, mesmo limitada, como um ponto de referência de inovação estética ou como fenômeno social. E Bacurau, certamente, é um exemplo que se destaca bastante nessa última categoria — como observou o crítico, sua “sublimação forçada” é uma expressão estética do lema “ninguém solta a mão de ninguém”, que era dito no período. É até difícil separar o filme em si e seu papel extrafílmico no momento em que foi lançado em pleno Governo Bolsonaro, funcionando como resposta à tendência neofascista e ao desmonte cultural, entre outros desmontes. Ou seja, não se trata só de falar em um fenômeno cinematográfico como um dado de repercussão e estimulador de debates sobre certos assuntos, mas de algo que, pelo seu contexto histórico durante a distribuição e a divulgação, funcionou ativamente como um item político de contestação. Na esfera política, isso tem um grande mérito e Bacurau é uma amostra de como a arte pode se articular diretamente com a militância. Entretanto, o campo da agitação e propaganda, como orientação de sentido e convocação, é um limite que impede a ficção de refletir a essência de um determinado período histórico. Bacurau, como drama edificante que é, espelha mais uma ação do que deveria ser do que aquilo que é no nosso contexto particular.

Para entender a romantização que há em Bacurau é preciso fazer uma retrospectiva da filmografia de Kleber Mendonça Filho, mais precisamente dos seus longas de ficção. Se seus grandes filmes, ironicamente, são os curtas, é porque os longas representam extremos. Em um texto sobre O Som ao Redor (2012) na Contracampo, João Gabriel Paixão foi preciso ao notar o tom apático de um drama naturalista. Está certo que naquele período a revista de crítica estava no seu crepúsculo, mas Kleber conhecia a revista e a hipótese é que essa crítica lhe influenciou. Afinal, nos dois longas de ficção seguintes se percebe uma busca pelo engajamento de personagens, pelo aspecto ativo, por uma injeção de ânimo social. Assim, houve um passo humanista, um ganho, mas de caráter abstrato, fazendo os dois filmes estacionarem, de modo binário, na outra estética unilateral. Primeiro teve a Clara de Aquarius (2016) encarando uma empreiteira e, numa busca de complexidade das relações sociais, ela também é mostrada como uma madame com suas contradições, mas sem nunca perder certa aura positiva de ativismo. Por fim, há Bacurau, produto de um tempo em que as lutas de classes no Brasil atingem um grau bem acentuado, e Kleber e Juliano elaboram um projeto sobre uma comunidade, um sujeito coletivo. Aqui também está presente Sônia Braga e a primeira aparição de sua personagem (Domingas) diz bastante sobre o filme, pois é, de certa forma, o máximo de contraditoriedade que vemos naquela cidadezinha. Bêbada no velório, ela ofende a amiga que morreu. Logo se nota que tal atitude foi um tipo desabafo emocionado, de expressão de dor. Pronto, nada mais haverá de contradição destacável nas relações sociais dos habitantes dali. Pura harmonia de resistência, Bacurau é mostrada como uma idealização coletiva de marginalizados.

É necessário um parênteses sobre o mesmo termo usado em níveis distintos: Bacurau, o vilarejo, e Bacurau, o filme. Admitindo que Bacurau seja um tipo de comunidade utópica de fato, então é uma expressão econômica e política do anticapitalismo romântico. Algo que existe mesmo, ainda que em número pequeno. Outra coisa é o filme romantizar essa experiência de sobrevivência e resistência. E é isso que ocorre. O techno-thriller poderia ser sobre como é a vida cotidiana ali, suas carências, pobreza, discordâncias de rumos, atraso tecnológico etc., para de fato entrarmos nessa experiência. É verdade que um pouco disso aparece nas cenas, mas sempre de modo superficial e disperso, pois a proposta é apresentar o local pobre como um bloco monolítico, mais ou menos coeso, moralmente enorme, enfrentando o mal externo. Desse modo, conhecemos a comunidade um pouco como o casal de motoqueiros sulistas, observando certa fachada, uma quase cidade-fantasma que, com efeito, é uma trincheira de combate camuflada.

Por outro lado, se as resistências — a rotineira e a defensiva — são tratadas de modo inverossímil para um drama, certos pontos que tem a mira na fragilidade da ideologia reformista e politicista são extremamente pertinentes e bem elaborados. Bacurau é expressão não apenas de um alerta contra a extrema direita, mas também de como os pequenos ganhos via política institucional do estado burguês são minúsculos e fáceis de ser desmontados, como de fato se observou com certa intensidade desde o Governo Temer. Toda a tensão de Bacurau se desenvolve como um cerco de cortes que, em tese, deixaria o lugar totalmente vulnerável para forças externas. Atiram no caminhão que transporta água. Cortam o wi-fi. Bacurau some até do Google Maps. Esse movimento simboliza de forma bem contundente como certas conquistas dos trabalhadores, mesmo tendo sua importância, são mínimas e não garantem uma emancipação concreta. Antes dessa ofensiva da extrema direita, o filme mostra um movimento diverso de “doação” estatal e eleitoreira. O partido do prefeito provavelmente é da direita “moderada”, mas também serve como ilustração de como a conciliação de classes da esquerda institucional só pode proporcionar esse pequeno progresso facilmente revogável, num pêndulo de dar e tirar, como ocorreu de forma intensa na política brasileira da última década.
 
Do grupo sociopata e gringo não sabemos muito além de que estão ali fazendo uma caçada humana. Eles são conduzidos por Michael (Udo Kier) e tratam a tentativa de massacre como um jogo bélico e letal, sendo acobertados pelo governo da região como meros praticantes de um tipo de turismo exótico. Ok, ao que parece serve como uma metáfora do imperialismo e da dependência terceiro-mundista, ainda mais que quem estava na cadeira da Casa Branca era Donald Trump naquele tempo, ou seja, alguém ligado ao movimento de supremacia branca. Todavia, para o contexto dramático, as informações são vagas e é possível ver apenas como um grupo criminoso rico e neonazista descolado de uma representação geopolítica. O ponto simbólico mais chamativo é em relação ao casal de brasileiros, bajulando os estrangeiros e descobrindo que não são vistos com o mesmo tom de branco e de humanidade.
 
Quando é revelado que o suposto disco voador é um drone monitorando a região, Bacurau passa, gradativamente, a girar seu acompanhamento para a percepção dos vilões avançando para o ataque. Com a mudança de campo predominante, até surge a impressão de que algo inusitado vai acontecer, afinal, o tríler de ficção científica deixa de acompanhar a resistência. Talvez algo relacionado com aquele monte de caixões. Que nada, as emboscadas sanguinolentas, ainda que bem encenadas, têm a função de descarrego emocional, de triunfo exemplar da metafísica política. E, por falar em encenação requintada de drama, não deixa de chamar a atenção que o problema central esteja justamente na incompatibilidade deste material  de “nordestern” com esse tipo de filmagem elegante. É uma especulação, apenas uma estimativa, mas esse é o tipo de roteiro que trazia potencial para ser um grande filme se fosse encenado de forma satírica, mais precisamente de um jeito folhetinesco. E o fato de Kleber ser um fã de John Carpenter — até referenciado no nome da escola de Bacurau  — indica que esse estilo de composição audiovisual do mestre estadunidense é algo que faltou aqui. Quase todos os longas de Carpenter são folhetins. A escola autêntica deste cineasta é a satirização cênica. Enquanto isso, em Bacurau, até as alucinações por psicotrópicos tem um apuro detalhado, que é o que geralmente agrada os festivais.
 
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