sábado, 4 de maio de 2024

Desidratação leve

Os Trapalhões e o Mágico de Oróz 
 
(farsa, 
BRA, 1984),
de Dedé Santana 
e Vitor Lustosa.
 


por Paulo Ayres

Satisfação e frustração: são as duas sensações oferecidas por Os Trapalhões e o Mágico de Oróz e uma determinada análise do filme pode se inclinar mais para uma das avaliações, dependendo do ângulo que se queira destacar. Pode-se dizer que toda boa sátira edificante proporciona isso, estaciona nessa encruzilhada, mas o diferencial dessa farsa é que ela tinha um potencial enorme de ser algo no nível de Os Saltimbancos Trapalhões (1981), a magnum opus dos Trapalhões. Retornando ao cenário da caatinga — assim como O Cangaceiro Trapalhão (1983) —, mas de um modo distinto, o projeto tem um caráter grandiloquente, de pretensão totalizante. Já começa com um tom documental com voz de seriedade para falar do Nordeste através de uma generalização, que reduz o “continente perdido” à imagem do sertão sofrido. Ainda que seja com boas intenções, a denúncia social revela uma preocupação carregada desse e de outros reducionismos. É uma bela paródia que até vai além do objeto estrangeiro parodiado, mas se perde no assunto brasileiro complexo com que lida na adaptação. Assumindo, às vezes, um tom didático, a solução enxergada para as mazelas da seca do sertão nordestino fica entre a religiosidade e o politicismo.

Quando não se curva a essa tendência ingenuamente educativa, Os Trapalhões e o Mágico de Oróz apresenta uma sátira musical de primeira qualidade. Se os Trapalhões são conhecidos por terem feito várias paródias na sua longa filmografia, a paródia do livro The Wonderful Wizard of Oz (1900) é aquela em que há uma sobreposição magistral dos elementos externos e o quarteto de humoristas. Além disso, a ambientação au naturel do cinema dos Trapalhões — fator chamativo para quem se habitua com a série televisiva (1974–1995) com cara de estúdio — traz um componente que realça o caráter fantástico, ausente até no filme clássico de 1939. O Espantalho do Zacarias, por exemplo, tem também algo de sinistro — ainda mais quando aparecem os carcarás de Tony Tornado —, por mais que não seja essa a intenção de um produto infantil. O lugar abandonado onde é encontrado o Homem de Lata cachaceiro, feito pelo Mussum, chama a atenção enquanto localidade “real”. O único momento em que o cenário se torna artificial e tudo tem um peso fake excessivo é na passagem confinada na habitação do mágico do título. No restante, o contraste está muito bem posto, fazendo da passagem dos protagonistas um rastro de maravilhamento — em relação a eles e na recepção deles diante do mundo que desconhecem. Aliás, tudo começa com um falso trio de protagonistas em que Didi Mocó surge trazendo a imagem do retirante sertanejo junto com Tatu (José Dumont) e Soró (Arnaud Rodrigues). A partir dessa premissa, o desdobramento que acompanhamos é que os três habituais escudeiros de Renato Aragão sejam, gradualmente, inseridos na trama e os dois novatos sejam deslocados. É o que ocorre mesmo, trazendo o entusiasmo de ver a personalidade conhecida dos três companheiros com o acréscimo da nova roupagem paródica.
 
Dedé Santana é quem traz novidades. Além do fato do ator assumir também a direção do longa, junto com Vitor Lustosa, o seu Leão Covarde é uma adaptação que abstrai bastante da representação original. Não é um animal antropomórfico, mas um delegado medroso que tem um pouco de semelhança com o felino. O contexto em que vive é aquilo que acrescenta brasilidade ao enredo. A cidade rural de Oróz é um palco em que a farsa física se apresenta da maneira mais básica. Há a presença da Xuxa como professora e um julgamento feito por repentistas. Um clima lúdico e crível, ao mesmo tempo, e que foi reproduzido também em Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987). Mas é em Os Trapalhões e o Mágico de Oróz que o desenvolvimento do roteiro é praticamente interrompido para acompanhar uma luta circense entre Didi e Dedé.

É nesse ambiente dominado por um coronel político (Maurício do Valle) que o filme identifica um vilão na questão abordada — o outro vilão é o Sol, ou seja, as determinações naturais. Não que esteja totalmente errado, mas o modo como as coisas são apresentadas indica que, além da mitologia cristã, a visão de mundo recorre ao mito liberal do “patrimonialismo”. Explicação fantasiosa de que as insuficiências e desvios das instituições são porque há uma fração de sujeitos que usa a coisa pública como coisa privada. Assim como a cena dos reflexos do sol numa faca ofuscando a vista, isso não enxerga que a essência do estado burguês é ser, basicamente, um balcão de negócios e o guardião da propriedade privada capitalista. A água privatizada pelo coronel ganancioso só causa indignação pela maneira cruel que é mostrada. Dominações mais sutis ocorrem frequentemente e para a democracia liberal está tudo bem. De uma maneira esperançosa, o quarteto acaba suplicando a duas entidades que ajudem o povo da região e eles. Há uma oração para uma divindade mandar “um pingo d'água e mudar a nossa sorte”. Esse é o anticapitalismo romântico de esfera religiosa. Os Trapalhões assinam também um pedido estatal escrito na tela, no último plano congelado do frevo na chuva: “E choveu... Que a chuva que molhou o sofrido chão do nordeste não esfrie o ânimo das nossas autoridades na procura de soluções para a seca”. Esse é o fetiche da cidadania e a visão politicista do racionalismo formal.

É quando chega ao Rio de Janeiro — através de um osso voador que antes fez referência a 2001: A Space Odyssey (1968) —, que o quarteto faz mais que videoclipes formidáveis, realiza um panorama cultural com relevância. Primeiro, há uma saudação ao Cristo Redentor como se eles tivessem chegado ao céu. Mas aquele deus de concreto armado e pedra-sabão nada responde. Resta descer o morro em busca da torneira enorme que eles estão atrás e com a parte eufórica da canção “Retirada”. Aí, descendo pelo caminho com bicicletas Caloi, os dublês ciclistas entram em cena aproveitando as fantasias. A estátua gigante está de costas. Mulheres de biquínis também estão de costas. A passagem pela Cidade Maravilhosa acaba de forma até psicodélica, mas essa mistura dita anteriormente não é esquizofrênica. Os Trapalhões e o Mágico de Oróz reflete bem a contradioriedade real e irônica que há na cultura moderna. Um close em bunda aqui, um merchandising ali, uma referência bíblica acolá.
 
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário