domingo, 5 de maio de 2024

Unidade binária

 Alma Gêmea 

(folhetim,
BRA, 2005
2006),
de Walcyr Carrasco.




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por Juliana Fausto
Contracampo/2005
 
O corpo em Alma Gêmea
 
A novela do horário das 18h da Rede Globo que estreou esta semana, Alma Gêmea alcançou níveis altíssimos de audiência, ao contrário de sua antecessora, Como Uma Onda [2004–2005], que amargou um quase fracasso. Reprise da parceria entre Walcyr Carrasco e Jorge Fernando, o folhetim retoma a época de O Cravo e a Rosa [2000–2001] e Chocolate com Pimenta [2003–2004] e consequentemente seus figurinos vaporosos e amor ingênuo. Mas, desta vez, no que tange ao amor, Carrasco pretende ir bem mais longe.

Casal se conhece e se apaixona. Ao anunciarem o inevitável casamento, são presenteados pela avó da moça com a seguinte narrativa: em tempos imemoriais os seres humanos contavam com dois pares de olhos, de pernas e de braços, isto é, eram pessoas duplas, inteiras, a caminhar pela Terra. O criador então separou-as em duas partes, os corpos como os conhecemos hoje em dia, e passou a ser tarefa de cada um encontrar sua outra metade, lugar do amor, da plenitude. Para Luna (Liliana Castro) e Rafael (Eduardo Moscovis) a tarefa estaria completa; encontraram-se, as metades. O destino traiçoeiro, porém, faz com que a mocinha seja assassinada — numa cena à la The Godfather: Part III [1990], com escadarias de teatro e tiros porém pontuada de expressões patéticas de horror tornadas grosseiras por uma câmera lenta em plano fechado demais. Depois de sua alma voar para o espaço infinito e quase alcançar um “ser de luz” que a aguardava, Luna acaba sendo arrebatada de volta à Terra, passando antes por um cenário virtual labiríntico à la Escher e cai justamente numa aldeia indígena onde uma mulher dá a luz. Sua alma reencarna ali, na menina índia e fica logo claro (inclusive na fala de uma anciã da aldeia que diz que a menina tem uma “missão”): ela terá que crescer para encontrar seu amor nos braços de Rafael, sua outra metade.

A premissa de Alma Gêmea, vê-se logo, encontra-se já em seu nome. Carrasco alega ter se baseado em “mitologia grega, cristã e budista” para criar sua trama. No que diz respeito à mitologia grega, pelo menos, encontramos o mito das pessoas duplas em Sympósion [385–370 a. C.], de Platão, onde à pergunta “qual a origem do amor?” são dadas diversas respostas diferentes, entre as quais essa em questão, proferida lá pelo comediógrafo Aristófanes — figura histórica usada de maneira ficcional pelo filósofo. Com esse discurso, Aristófanes pretende justificar o amor entre iguais; segundo conta, havia três tipos de seres humanos: os que eram duplamente homens, duplamente mulheres e ainda os que tinham os dois sexos. Separados pela ira divina, cada um procuraria tornar-se um novamente através da cópula com sua metade originária. Isto é, longe de ser um libelo sobre destinação, é uma defesa do amor dos corpos; tornar-se um novamente significa manter relações sexuais, e se há algo anterior, é a orientação (sexual) de cada um nessa busca pela completude de si. Ora, a novela em questão não poderia ter passado mais longe disso. Ali não são os corpos que importam, eles sequer existem. São as almas, divididas violentamente que precisam encontrar seu par originário. Para Carrasco não há corpos, mas somente o espírito. É a alma que é gêmea, e só ela. O mito dos corpos unos não tem lugar ali, na verdade. Ele ilustra uma outra instância: ao dizer corpos duplos somente se quer significar almas duplas; ou ainda, ao trazer um mito antigo — e já usado com mais propriedade, se é possível dizer isso, em produções como Hedwig and the Angry Inch [2001], de John Cameron Mitchell — e invocar várias culturas, a intenção foi apenas dar uma certa aura de sabedoria, pois o que está em questão sempre é a ideia de destino, de amor único, de história traçada de antemão.

Há um paralelo que não parece descabido e pode dizer mais sobre Alma Gêmea. A personagem da mãe da indiazinha predestinada é feita por Luciana Rigueira, numa quase reprise de seu papel em Brava Gente Brasileira [2000], filme de Lúcia Murat. Não tendo feito quase tevê, é interessante que tenha sido escolhida para viver essa índia-mãe que ostenta no rosto até mesmo as mesmas pinturas ornamentais com que apareceu no filme. Mas lá, Ánote, a índia estuprada e depois feita esposa de um português, mata seu bebê porque não quer que seu único filho (as índias de sua tribo, é dito em Brava Gente Brasileira, por se considerarem guerreiras, têm apenas um filho cada; portanto escolhem com muito critério que criança deixarão nascer) seja daquele homem, daquela gravidez miscigenada, daquele sangue misturado. Aqui, também grávida de um homem branco e mesmo rejeitada por ele, a quase-Ánote dá a luz com alegria à criança e a cria com muito carinho e cuidado. Trata-se de uma criança especial, mística e mítica. Com missão. Seu corpo não importa, sua identidade não passa por ele, não diz respeito a ele. Não se trata de uma criança bastarda, de carne misturada. Ela é só alma.

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Lista de fantasy feuilleton no subgênero supernatural fiction:

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