segunda-feira, 6 de maio de 2024

Comunicação social

Meu Mundo em Perigo

(tragédia,
BRA, 2007),
de José Eduardo Belmonte.


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por Carlos Alberto Mattos
Críticos/2010

Vidas no fluxo

A gente precisa de um tempo para entrar na frequência dos filmes de José Eduardo Belmonte. Era assim em Subterrâneos [2003] e Se Nada Mais Der Certo [2008] (não incluo aqui A Concepção [2005] porque, deste, jamais entrei na frequência). Seus personagens nos são apresentados em pleno fluxo de suas vidas, sem aquela preparação clássica que aciona nossos mecanismos de simpatia ou identificação. Aprendemos a conhecê-los em plena algaravia de sentimentos e ações que, a princípio, parecem fazer pouco sentido. Nossa percepção deles vai se construindo aos poucos, e quando nos damos conta, estamos enredados num misto de exasperação e delicadeza.

É assim também em Meu Mundo em Perigo, seu filme “maldito” que, depois de ganhar dois prêmios de interpretação no Festival de Brasília de 2007, só agora encontra uma chance de lançamento comercial. A gente precisa de um tempo para compreender o que se passa entre os três personagens principais, que vivem mundos distanciados. Elias (Eucir de Souza) disputa a guarda do filho com a mulher, uma ex-junkie. Fito (Milhem Cortaz) é um marido submisso e filho devotado que terá dificuldade em suportar a morte do pai. Ísis (Rosanne Mulholland) é uma jovem à deriva que também padece de uma disfunção familiar. Um acidente, um posto de gasolina e um hotel barato do centro de São Paulo vão colocar essas criaturas tristes à mercê de um encontro.

A dramaturgia de Belmonte é um habilidoso engendramento de fracassos. Mas até que esses fracassos se concretizem, ele disseca a humanidade dos personagens com uma beleza fora do comum. A relação que se estabelece entre Elias e Ísis, através da troca de bilhetes, é um desses raros momentos em que o cinema logra expressar o desespero e a lufada de calor humano capaz de dissipá-lo, ainda que momentaneamente. As palavras, escritas, gritadas ou sussurradas, têm um valor provisório e uma função precária ali onde tudo é pulsão e compulsão. As falas disputam com a trilha de músicas e efeitos sonoros um lugar de afirmação que frequentemente se extravia e se frustra. Exemplo disso é a sequência do julgamento da causa da guarda do menino, em que a lógica judicial é arrebentada por uma montagem discrepante, ao som de Caetano Veloso cantando “It’s a Long Way”. Sobram os fragmentos, as sôfregas tentativas das pessoas de se decidirem entre a aniquilação e a salvação.

Há um sabor de Nouvelle Vague em Meu Mundo em Perigo, um pouco pela forma como Belmonte solta seus personagens no mundo para filmá-los assim, no desvio; um pouco pelo papel do acaso, de um certo fatalismo e do desconforto existencial que rechearam os primeiros filmes de Godard, Truffaut, Malle etc. E há muito da claustrofobia de um certo cinema paulista contemporâneo, que converte a geografia da cidade em impossibilidade de fuga.

Como quase todo filme de Belmonte, Meu Mundo em Perigo começa estranho e confuso, mas nos conquista gradativamente. Difícil não aderir à intensidade com que tudo se desenrola, seja na violência, seja na ternura. 

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