quarta-feira, 8 de maio de 2024

Quadro realista

 Du Levande 

(comédia,
SWE/GER/FRA/DEN/NOR, 2007),
de Roy Andersson.
 


por Paulo Ayres

Entre as várias expressões artísticas, a pintura possui características que a colocam numa posição de avaliação bem complexa por ser uma mensagem em imagem estática. Ela não conta com a temporalidade, o desdobramento de conteúdo, que há na ficção. Deste modo, se a arte ficcional possui uma base bem desenvolvida de metodologia analítica, a ilustração — a pintura em sentido estrito de pigmentos líquidos, desenhos com material seco ou tecnologia digital —, por outro lado, tende a gerar mais discordâncias avaliativas. É necessário um aprofundamento teórico sobre a especificidade dessa arte para, a partir daí, ter um método cada vez mais sólido e flexível, como já foi alcançado pelos materialistas dialéticos na ficção — nessa última, os desacordos se apresentam mais na classificação de uma pequena fração de obras insólitas. É por isso que um filme como Du Levande gera uma reflexão importante sobre essa questão, pois sua fruição exibe uma construção cinematográfica com espírito de pintura. Roy Andersson nos apresenta um mundo relativamente estático. São 57 segmentos de curta duração mostrando a vida cotidiana numa cidade sueca.

Em Du Levande o enquadramento oferece uma forma de olhar em que a mobilidade existe, mas está delimitada pelo espaço cênico que parece congelado, num duplo sentido de paralisia e frieza. No entanto, se a fotografia esmaecida e a maquiagem pálida são elementos para designar o caráter cadavérico de uma rotina profundamente alienada, há também a antítese, certo calor humano resistindo nos espaços ou, ao menos, tentando sobreviver para além dos rituais mecânicos. Planos estáticos, mas não fechados no seu mundinho. Às vezes como um detalhe no quadro, outras vezes como uma ligação direta com outro espaço, o fato é que a ideia de conexão social está bem salientada nesse enorme panorama, que não tem um centro mas pontos de saída e entrada. Não é sem razão que as janelas e as portas têm um destaque nas imagens de Andersson. Há um fluxo de vidas interconectadas, enquanto a mesquinharia diária coloca cada um num canto. Nesse sentido, a escolha de gêneros se revela duplamente adequada para as pretensões de fazer uma metáfora sobre uma vida estranha, digna de mortos-vivos. Sendo uma comédia mágica, é possível ter uma alta dose de flexibilidade para uma espécie de fábula urbana que almeja a “mostração” e não a moralização.
 
Andersson conduz uma dinâmica comediesca próxima da pintura e vai além dela. Em certos segmentos, há uma sensação não de quadro, mas de quadrinhos. Algumas pequenas tramas se desdobram em duas ou três paisagens, como uma tira de jornal. Algumas vezes, também, o enquadramento se afasta ou avança um pouco, assim como há um travelling no corredor de um banquete cheio de gente. Mas o que predomina é a câmera fixa mesmo. Esse repouso visual, todavia, observa a inadequação. Cada um a seu modo, com seu sofrimento singular, com sua aspiração de ir além do que a vida oferece. Certas expressões são ruidosas — a mulher lamentando no banco da praça, membros da banda de metais Louisiana Brass Band ensaiando —, outras tentam a discrição, mas falham — a professora que cai em pranto na sala de aula para o olhar curioso dos pequenos alunos —, e se vê também uma expressão desesperançosa que quebra a quarta parede — o psiquiatra que diz à câmera que está exausto de ouvir pacientes egoístas que não estão satisfeitos com as próprias vidas. Os que não estão em um tipo de suspensão conflituosa com seu meio, apenas reproduzem sua rotina de maneira automática, tornam-se um elemento totalmente coisificado na imagem parada — mesmo que estejam produzindo certo movimento, como na cena em que um pai corre na esteira e ignora seu filho.

Embora deixe a dimensão fantasiosa entrelaçada com a realidade, a sátira de Andersson diferencia pelo menos dois momentos oníricos e eles dizem bastante sobre a essência da obra. Um pesadelo e um sonho no sentido positivo. Um carpinteiro (Leif Larsson) tem um sonho ruim em que é condenado à cadeira elétrica por ter quebrado o conjunto de porcelana de uma família aristocrática. Além de ironizar a burocracia à la Kafka, quando a toalha é puxada revela dois símbolos nazistas na mesa. O outro sonho é de uma garota (Jessika Lundberg) que se casa com seu ídolo musical Micke Larsson (Eric Bäckman). Toda a falta de mobilidade nesse mundo parece se redimir nessa passagem. O prédio dos recém-casados se desloca pela cidade e uma multidão aparece na janela para desejar felicidade ao casal. Andersson alterna os planos de dentro e de fora do apartamento, gerando mais que uma dinâmica de estúdio, redireciona o olhar do espectador e de personagens para um ponto em comum. E, se essa “fantasia dentro da fantasia” parece um otimismo sem os pés no chão, outro evento aponta para o olhar comunitário que quebra, momentaneamente, o ciclo de alienação subjetiva da sociedade burguesa. Embora não fique claro se é outro sonho ou não — no início, um sujeito no sofá diz ter sonhado exatamente aquilo —, o conjunto de aviões bombardeiros sobrevoando a cidade levanta os olhares para uma mesma direção. Seria o fim do mundo? Seria uma guerra devastadora se aproximando? De fato, é a lógica do mundo capitalista se deixada no seu desenvolvimento antagônico, mas a própria maneira ambígua, de ser realidade efetiva ou não, sublinha que é uma possibilidade, não um destino inescapável. O que é mais significativo é a capacidade humana de se afastar de seus problemas singulares e olhar a vida social como uma totalidade aberta, para além da chuva torrencial.

Na contagem dessa sátira realista há, aproximadamente, oitenta minutos de olhares perdidos nas contradições minúsculas da cotidianidade e uns seis minutos de suspensão e atenção do rumo conjunto. Segunda parte da Trilogia dos Vivos, Du Levande não é uma contemplação do absurdo voltada a si mesma, fechada e desconexa, como é o tom da arte niilista em suas diversas manifestações. Dessa forma, não basta imaginar Sísifo feliz — como disse certo filósofo irracionalista —, é preciso que Sísifo tenha consciência de que é um ser social, prático, histórico e classista.

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