sábado, 6 de janeiro de 2024

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 Sonho de Verão 
 
(comédia,
BRA, 1990), 
de Paulo Sérgio de Almeida.
 


por Paulo Ayres

Uma característica inoportuna de uma parte das sátiras brasileiras lançadas no cinema é a explicitação de que são meros meios. Veículos de divulgação para outras mercadorias. Bom, muitos podem dizer que, de certa forma, isso acontece mundo afora, mas é que aqui se formou uma tradição própria que não tem nenhum jogo de cintura para, ao menos, dar uma disfarçada nesse parasitismo de um agente externo ao cinema. Desde a década de 1980 várias produções, que têm algum vínculo com o Grupo Globo, batem ponto atrás de uma fatia de mercado. Com efeito, é curioso notar que em Sonho de Verão isso está refletido tanto no texto quanto no subtexto. A cadência do marketing nessa comédia de fantasia, então, vai além das propagandas mecânicas do chocolate Baton e do caldo Knorr, pois ela é estruturada numa relação de subserviência em distintos níveis.

Filme das Paquitas (e dos Paquitos). E quem são essas modelos senão serviçais de um programa televisivo infantil? As coroinhas da Xuxa. E, nessa empreitada, os jovens são enfatizados com os hormônios em alta devido ao aspecto teen dessa sátira edificante. Porém, Sonho de Verão é de uma servidão total e isso inclui um determinado controle puritano, por mais que, para um filme da turma da Marlene Mattos, haja elementos inusitados na sinopse: estelionato, falsidade ideológica, corrupção de menores, um jardineiro perneta fazendo gol... É sobre uma falsa colônia de férias organizada por um malandro carioca afetado chamado Léo, isto é, uma figura de tom farsesco num mundo de encenação comediesca. Ninguém menos que Sérgio Mallandro sendo Sérgio Mallandro — na época, ele era até um apresentador reserva do Xou da Xuxa. 

A malandragem, no fim das contas, é tratada superficialmente como uma pegadinha que soa combinada. É verdade que na base do enredo há o choque de classes, todavia isso se desenvolve como um clichê ingênuo de se tornar rico por “quinze minutos”, não satirizando a desigualdade social em si, mas se servindo do contraste de renda como uma plataforma festiva e marqueteira. A comédia usa e abusa das pompas automaticamente, gerando uma incompatibilidade da abordagem, relativamente moderada, com a aceitação fácil dos empregados da mansão. Há, também, outra dimensão de subalternidade artística em presenciarmos atores de fato, como Fafy Siqueira (a governanta), David Pinheiro (o motorista do ônibus) e Oswaldo Loureiro (o procurador), servindo de escada pontual entre os números musicais pop, incluindo até a banda Yahoo. Nesse sentido, não vemos o trabalho doméstico que sustenta aquela diversão, embora haja um momento interessante quando a situação se inverte e os festeiros fazem faxina — e é um dos poucos instantes em que se afirma a tímida identidade de ficção mágica, ao rebobinar cenas.

Há, no entanto, duas grandes sequências na comédia de Paulo Sérgio de Almeida. A primeira se desenvolve dentro de um pequeno cinema no interior da mansão; desde a metalinguagem do filme visto no escuro, o enquadramento, as gags, até o desfecho com a governanta invertendo o jogo, este momento é primoroso como exemplo positivo de clima e mise-en-scène. A outra cena se revela de maneira extremamente irônica com a essência de Sonho de Verão: o jabá atinge o nível hard e a graça é enorme. São os breves minutos em que aparece o Faustão (como ele mesmo) contracenando com Sérgio Mallandro num timing notável — havendo até uma anunciação metalinguística do filme que os dois fariam juntos pouco tempo depois. Mas momentos criativos assim são raros numa estrutura que parece vários intervalos comerciais encadeados na forma de longa-metragem.

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[0] Primeiro tratamento: 01/2018.
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