quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Encontro realista

Movie 43

(farsa,
USA, 2013),
de Steven Brill,
 Will Graham,
Steve Carr,
Griffin Dunne,
James Duffy,
Jonathan van Tulleken,
Elizabeth Banks,
Patrik Forsberg,
Brett Ratner,
Peter Farrelly,
Rusty Cundieff
e James Gunn.
 

 
por Paulo Ayres

Movie 43 é um filme esculhambado por muita gente. Outros nem ouviram falar nessa peça estranha saída do mais famoso setor de cinema. Pois bem, de fato, dizem que o parto foi difícil, cheio de contratempos e incômodos desde o projeto até o lançamento em 2013. Movie 43 é uma antologia de curtas farsescos sem muito pudor para tratar de incesto, coprofilia, zoofilia, bullying, trabalho infantil (Machine Kids, de Jonathan van Tulleken) etc. Contudo, Movie 43 não é apenas o sensacionalismo que essa descrição solta sugere. Os ingredientes ofensivos e o deboche ultrajante se articulam para explicitar costumes, como se colocasse uma lupa metalinguística sobre certas mediações sociais, mesmo as mais “sagradas”. Nesse processo, há um desfile de rostos hollywoodianos de produções classe A, para a irritação de cinéfilos fãs de Oscar ao ver seus ídolos em situações extremamente constrangedoras — inclusive ironiza a ficção de super-herói (Superhero Speed Dating, de James Duffy), a principal matéria-prima de blockbusters nesse novo século. Em suma, Movie 43 está no mesmo grupo de grandes filmes malditos como Showgirls (1995), a dramédia de Paul Verhoeven: ambos presentes em algumas listas dos piores filmes da história, mas se trata de joias preciosas pouco compreendidas.

Curiosamente, Movie 43 se desdobra para além de sua complicada consolidação ao receber uma versão alternativa lançada fora dos EUA. O que muda de uma versão para outra é justamente a farsa fundamental que serve de caule para pendurar as outras. Na trama original (The Pitch), dirigida por Peter Farrelly, o roteirista excêntrico Charlie Wessler (Dennis Quaid) tenta convencer um executivo de cinema da viabilidade de seu projeto e cada curta é uma das suas ideias mirabolantes que vão sendo apresentadas. Já a versão alternativa (The Thread), dirigida por Steven Brill, sai do ambiente laboral e adentra o sacrossanto ambiente familiar. O ponto de partida é, então, jovens punheteiros em um quarto navegando na internet. Baxter Cutler (Devin Eash), um pequeno gênio da informática, assume o papel de guia de Calvin e J.J. — respectivamente, seu irmão mais velho e o amigo dele —, e o nosso guia também, rumo à deep web da vida cotidiana. Temos uma sátira realista nas duas versões, mas a alternativa é um pouco melhor por ser orgânica com a temática de lazer e da eroticidade.

Tal como “Isso Para Mim é Perfume” (canção dos Titãs), Movie 43 tem coragem de apagar as fronteiras entre tesão, amor e nojo. É compreensível que os dois ópios mais buscados no nosso contexto histórico sejam a religiosidade e o amor romântico, duas mediações decadentes reverenciadas como meios de suportar as dores de uma sociedade profundamente alienada. O que é difícil de entender é que seja mais difícil encontrar críticas contundentes ao amor burguês (humor ateu não é tão incomum assim). Pois bem, Movie 43, literalmente, defeca essa mediação (The Proposition, de Griffin Dunne). Borrando, nos dois sentidos, a linha do eroticamente aceitável e do que é considerado doentio, pois está em conversas comuns; seja num churrasco da típica família médio-classista norte-americana, seja na intimidade de ex-namorados vazada no supermercado (Veronica, de Steven Brill). “Isso não é um amor verdadeiro!”, pode se levantar protestando um cinéfilo que deu zero ou uma estrela para o filme. Mas como, em Movie 43, a metalinguagem transforma o desvio no habitual, o íntimo no público, o sujeito é obrigado a refletir sobre o que é esse tal “amor verdadeiro”. Tal como o treinador de Victory’s Glory (de Rusty Candieff) impede, repetidamente, que os jogadores de basquete incorporem o típico discurso edificante visto em ficções sobre os “vencedores”.

Há muitos dates em Movie 43. E eles são grotescos, é verdade. Todavia, a abordagem farsesca sempre faz referência a componentes concretos da realidade relacionados ao corpo humano e sua dinâmica de eroticidade civilizada por regras de convívio desenvolvidas historicamente em contexto da sociedade de classes. É por isso que os testículos à mostra, como parte natural do pescoço de um homem (The Catch, de Will Graham) mantém a mesmo nível de perturbabilidade que a história, menos surreal, de uma mocinha tendo a sua primeira menstruação na casa do primeiro namorado (Middleschool Date, de Elizabeth Banks). Não é sem razão, também, que outro date dirigido pelo ilustre Peter Farrelly (Truth or Dare) termine com o jogo erótico modificando e turbinando os corpos do casal: os desafios esdrúxulos, que cada um impõe ao outro, são uma metáfora sobre o gradual acordo íntimo de compartilhamento corporal e sobre o poder do outro em moldar a gente e vice-versa. E por falar em modelagem de cidadãos, Movie 43 faz uma bizarra fusão de home e high school (Homeschooled, de Steve Carr) para refletir os costumes habituais — engrenagens do nosso mundo torto — numa série de “dates familistas”.

Movie 43 é, no fim das contas, a apresentação do projeto em Hollywood e o “Movie 43” diegético (o filme proibido e ultrassecreto que os adolescentes estão procurando na internet). A obra se constrói na sua busca. Na objetividade real, de projeto polêmico para obra de arte excomungada. Nesse sentido, seus curtas não estão soltos como esquetes jogados, mas amarrados num fio condutor coerente, tanto na versão que vai diretamente ao local de realização de arte massificada e negociação entre a autoria artística e a lógica do mercado; como também na versão com a temática de jovens curiosos conectados com o mundo através da rede mundial de computadores, ao mesmo tempo que possuem um cordão umbilical com a família nuclear do american way of life. Não há porto seguro, portanto, só há protocollum em diversas camadas, do doméstico ao institucional, da milf à organização criminosa.
 
No entanto, por mais que Movie 43 tenha um segmento unificador (em cada versão), isso não estabelece uma totalidade integralmente coesa na farsa. Não deixa de haver, ainda que tenha uma ótima lapidação, a aparência de colagem, de almanaque audiovisual, além de, às vezes, soar provocação pela provocação. Dois curtas foram cortados e, ainda assim, nem todos os que foram selecionados se sintonizam claramente na temática de dates, no sentido afetivo-sexual. Por outro lado, há também conexões com o tema de uma forma mais mediada. Vide a reunião empresarial de colarinhos brancos debatendo o feedback dos jovens em relação ao seu último produto lançado (iBabe, de Steven Brill) — com o nonsense sabiamente utilizado para desnudar as conversas marqueteiras da racionalidade formal.
 
De certa forma, são novas determinações sociais que não resolvem os antagonismos histórico-estruturais, mas aumentam o nível de complexidade da sociabilidade neste contexto classista, principalmente em seus costumes de intimidade. Panorama em que a intensificação individualista e escapista leva a uma perspectiva de mundo apocalíptico e não à sua superação. Onde — consciente ou não, querendo ou não, torcendo o nariz ou não —, as abstrações humanistas e familiares de conciliação se dão como as duas celebrações de aniversário do filme: os dois amigos levando os cadáveres de duendes para a lixeira, felizes com o ouro conseguido (Happy Birthday, de Brett Ratner); e o linchamento da namorada que maltratou um animal de estimação (Beezel, de James Gunn). Afetividades ilhadas.

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[0] Primeiro tratamento: 01/02/2020.
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