sábado, 30 de agosto de 2025

Pureza realista

 Os Sete Gatinhos

(folhetim,
BRA, 1980)
de Neville d'Almeida.
 


por Paulo Ayres

No conjunto de frases irônicas de Nelson Rodrigues encontra-se uma que diz que, se as pessoas soubessem das intimidades umas das outras, ninguém se cumprimentaria com as mãos. A peça teatral Os Sete Gatinhos (1958) sintetiza bem o tema das fachadas e intimidades presente na obra do autor e, ao ser transposta ao cinema em 1980, popularizou algumas frases memoráveis no cinema nacional. O filme de Neville d'Almeida contém, por exemplo, “eu quero saber quem foi que desenhou caralhinhos voadores na parede do banheiro... quem foi?” Há também o deboche, visto em outras adaptações audiovisuais, com um suposto complexo de inferioridade do trabalho de contínuo: “me chama de contínuo!”... “eu sou contínuo e você é um filho da puta!". Nesse sentido, para ir ao cerne do folhetim de Neville é necessário se atentar para outra frase: “Silene é pura por nós!”.

A interpretação excelente de Lima Duarte dá vida a um Noronha sinistramente cômico. Ele é o centro gravitacional do enredo que fala de um homem relativamente conservador. É a figura do pai rígido ironizada na contradição de concentrar sua devoção na caçula de cinco filhas, prostituindo as outras como um sacrifício. No desfecho, aliás, numa satirização de um ritual de sacrifício, as mulheres da casa assassinam a figura paterna do tirano. Segue-se um final festivo que equilibra o caráter de um horizonte mais elevado e aberto. Perto da situação coisificadora anterior, sob a batuta de Noronha, a prostituição oficial, com a casa transformada num bordel das mulheres, emerge como um grau de conquista, ainda que se dê no terreno da mercantilização sexual. Não há um final romantizado como haverá em Bonitinha, Mas Ordinária (1981), de Braz Chediak.
 
Se na sátira naturalista A Dama do Lotação (1978), Neville destacou uma canção de Caetano Veloso, na sátira realista sobre a família nuclear de Noronha, a canção de Erasmo Carlos, “Os Sete Gatinhos”, abre caminho no créditos iniciais e suas variações musicais retornam  às vezes. Curiosamente, em certa passagem, ouve-se também o toque da música de Caetano. Além disso, uma canção de Roberto Carlos aparece como trilha que soa satírica em duas cenas de sexo com o cafajeste Bibelô (Antônio Fagundes) — cenas típicas da apelação erótica da Pornochanchada. 
 
Silene (Cristina Aché), a adolescente caçula, é trazida de volta ao lar pelo Dr. Portela (Ary Fontoura). Foi expulsa do colégio por matar uma gata prenha a pauladas. Do cadáver da felina saem sete filhotes vivos. Carregado em simbologia, Os Sete Gatinhos dá um passo e se estabelece como ficção fantasiosa. O filme de Neville enfatiza a breve passagem em que Noronha conta que conversa com um fantasma chamado Dr. Barbosa Coutinho. O ser do além é que lhe diz que o homem que leva sua família à perdição é um que chora por um olho só. Talvez indique que Noronha, o homem da tal lágrima profetizada, possui uma sensibilidade unilateral no esquema familiar que organizou. Afinal, o servidor coloca uma filha no altar como se fosse santa e as outras como subordinadas “corrompidas”, e também sua esposa (Telma Reston), que ele apelidou de Gorda.
 
Quando Noronha descobre que a suposta pureza de Silene não existe mais e ela está grávida, esforça-se para prostituí-la e colocá-la no seu conceito de “impuras”, em que divide, mentalmente, as mulheres de forma binária. Dois homens velhos, o comerciante gringo e o médico, são os primeiros clientes, fechando essa parte do filme e esses barracos de família. Outra parte de Os Sete Gatinhos começa numa piscina. Enviada ao encontro de um deputado, Arlete (Regina Casé), a filha mais rebelde e desbocada. Logo mais, na casa de Noronha, agora ex-contínuo, há uma visita para a filha Aurora (Ana Maria Magalhães). É a reta final e o folhetim sobrenatural destaca a cor vermelha no figurino das pessoas que moram ali. Um contraste com o “homem que se veste de virgem”, de roupa branca.
 
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Lista de fantasy feuilleton no subgênero supernatural fiction:
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