por Paulo Ayres
Se em Rio Babilônia (1982), Neville D'Almeida apresenta um Rio de Janeiro realista, antes dessa obra, em A Dama do Lotação, o diretor apresenta a cidade de outra maneira. O naturalismo impregna o ar e os lugares retratados. A história do casamento de Solange (Sônia Braga) e Carlos (Nuno Leal Maia) é uma tentativa de espelhar contrastes modernos, mas se dá numa alternância antidialética. Nas conversas masculinas de costumes patriarcais, vemos Carlinhos e seu pai (Jorge Dória) falar em mulheres “frias” e “quentes” e o filme também tem algo de temperatura variada numa mudança binária e mecânica. A Dama do Lotação, folhetim histórico, faz um passeio pela paisagem carioca — do final dos anos 1970 — num registro tão turístico quanto patológico. A rotina precipitada de Solange se apresenta como uma determinação absoluta.Do rito de passagem que é a festa de casamento, acontece, em seguida, uma iniciação traumática através de estupro marital. A partir daí, A Dama do Lotação abre gradativamente um abismo entre a fachada familiar e a anarquia relacional.
O primeiro elemento, ou o mais básico, nesse processo estético de passividade, é o uso recorrente e multifacetado da canção “Pecado Original” de Caetano Veloso. A canção é ótima, mas é usada e abusada em rearranjos instrumentais, como se evidenciasse um comportamento condicionado de Solange. A musiquinha começa em algum tom, a personagem parte para a “caça” no ônibus como um impulso. Entre as performances eróticas que Neville filma, há até uma passagem mórbida num cemitério. Entre túmulos, cachoeira, mato ou praia, a apelação típica do Exploitation Cinema recebe um contorno distanciado de cartões-postais da sátira naturalista. Nesse sentido, a conversa com um psicanalista entediado (Cláudio Marzo) corrobora com a mensagem: frente ao relato angustiante da mulher, com agressividade verbal, o psicoterapeuta só resta dizer que aquilo é natural... enquanto os créditos finais surgem. No círculo determinista que se forma, Solange continuará escolhendo homens aleatórios no transporte público e Carlinhos, ao saber disso, morre para o mundo, sempre deitado em sua cama. A ficção de costumes, tal como é escrita e encenada, fala de uma vida cotidiana de “mortos-vivos” num retrato objetivista.
O próprio Nelson Rodrigues colaborou no roteiro que adapta sua sátira original — que é parte da compilação folhetinesca A Vida Como Ela É... (1950–1961). O relato de poucas páginas teve um esticamento e o resultado atrofiou o enredo. É um processo de adaptação audiovisual distinto daquele em que a fonte são as peças teatrais. A série A Vida Como Ela É... (1996), da TV Globo, capta melhor a essência da obra literária ao realizar episódios curtos. Exemplo de casos em que menos é mais.
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Lista de historical feuilleton no subgênero fiction of manners:
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