USA/GER, 2004)
de Martin Scorsese.
por Paulo Ayres
Um painel de passagem de anos acompanha os bastidores tumultuados da produção de Hell's Angels (1930), o filme mais caro da história até então. A frota de aviões de Howard Hughes (Leonardo DiCaprio) está ali servindo de componentes cinematográficos, com certa missão lúdica de espetáculo. The Aviator, na sua primeira parte, detém-se nessa dimensão enquanto um obstáculo técnico para superar e um ramo de negócio de grandes investimentos. As festas, além de destacar a montagem ligeira, com um quê carnavalesco — e, numa das festas mais a frente, Hughes e uma adolescente dançam samba. O transbordamento rápido de ícones e as cores chamativas da fotografia favorecem o enredo, que se concentra entre 1913 e 1947 na biografia do magnata da aviação. Martin Scorsese filma como se fosse um panorama aéreo, ilustrando o relato de longo alcance no tempo com o estilo satírico. A classe capitalista desnudada na excentricidade e no arrojo de vanguarda. Quando o enorme Hercules levanta voo sobre as águas é como se transmitisse o peso de cada solda na carcaça de metal enquanto êxito contraditório. Vista rapidamente em certas tomadas, como trabalho de fundo, a classe operária é também refletida, em parte, pois The Aviator se concentra na alta burguesia industrial.
O caminho do futuro, repetido no fim do filme, é um meio do caminho. É a segunda obra da trilogia folhetinesca de Scorsese. Três sátiras realistas, protagonizadas por Leonardo Dicaprio, compõe essa trinca de ficção histórica. Na feitura e na cronologia interna, começa com Gangs of New York (2002), tendo Amsterdam Vallon crescendo junto com a urbanização da cidade estadunidense que dá nome ao filme. O terceiro folhetim só emerge quase dez anos depois do lançamento de The Aviator e consegue ser um passo além comparado com o patamar dos anteriores. The Wolf of Wall Street é uma obra-prima. É a cinebiografia de Jordan Belfort, um corretor da bolsa de valores, num ritmo e ironia ainda mais dinâmicos que os dos outros dois painéis satíricos. Gangs of New York se passa no século 19 e observa combates proletários entre si e nas ligações com camadas dominantes. The Wolf of Wall Street ocorre na segunda metade do século 20 e espelha a concentração de capital na sua face mais descarada como jogos de mercado, inclusive com condenação criminal. Com Howard Hughes, Scorsese foca numa dualidade de progresso e decadência no mundo capitalista, encurtando caminhos com investimentos milionários em tecnologia de ponta e, ao mesmo tempo, alienando pessoas em concorrências intensas em vários níveis. Na intimidade da vida cotidiana e em grande escala, como a disputa entre a TWA e a Pan Am — essa última representada em Juan Trippe (Alec Baldwin).
A câmera de Scorsese observa os toques de Hughes. Os toques e tiques se revelam TOC. No entanto, a recorrência em salientar esse transtorno mental não se cristaliza como um recorte psicológico de diagnóstico de disfuncionalidade. Há um tipo de eco temático no medo exagerado de germes e a busca da descontaminação do corpo, principalmente as mãos. No contexto da satirização cênica, indica a outra dimensão coexistente com a amostra da humanidade desbravando novos caminhos, até pelos céus. Nos bastidores, também há aqueles conflitos nada honrosos, envolvendo “crimes que não são crimes”, ou seja, certas contravenções como chantagem, suborno e sonegação. O triunfo de Hughes sobre a comissão parlamentar, comandada pelo Senador Ralph Owen Brewster (Alan Alda), é relativizado pela condição de saúde frágil do burguês e no caminhar, metafórico, pela sujeira dos detalhes. No período isolado em sua própria sala de cinema, Hughes em imagem de “náufrago”, é visitado até pelas antigas companheiras que são destacadas na síntese do folhetim: as atrizes Katharine Hepburn (Cate Blanchett) e Ava Gardner (Kate Beckinsale).
Antes dos flashes fotográficos no interrogatório estatal, Hughes vai se mostrando desconfortável com as luzes das câmeras da imprensa que acompanha as confraternizações de Hollywood. Incômodo com esse holofote de brilho e lapsos de cegueira. A lâmpada no chão, quebrada e pisada, é um movimento breve e significativo, como outras composições simbólicas que The Aviator cria numa disposição cenográfica com móveis e cores alinhadas. Aparentemente impecáveis, os ambientes são também palcos de desconfiança, como se o perfeccionismo do personagem, meio surdo, estivesse projetado na superfície, mas não no ruído de fundo dos locais. Em sintonia com isso, ilegalidade e política são como alguns instrumentos essenciais de controle aéreo, mas não predominantes no enredo. De forma parecida, as representações da subjetividade afetada pelo transtorno obsessivo-compulsivo são como turbulências dosadas na narrativa, não retirando o peso temático das estruturas metálicas, entre outras coisas.
Hughes foi um pioneiro na aviação comercial e piloto das próprias máquinas voadoras. Na primeira queda literal, há um pouso forçado numa plantação de beterrabas. Scorsese faz disso uma amostra preparatória para o acidente grave que surge depois. Ainda que o uso da computação gráfica dos efeitos visuais seja facilitado pela composição estilizada, a sequência da destruição na área residencial tem algo do espetáculo datado e sintetizador de seu período. A obsessão de Hughes na produção de Hell's Angels, várias décadas atrás, continua, em parte, nas superproduções posteriores no cinema.
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Lista de historical feuilleton no subgênero fiction of manners:
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