sábado, 9 de março de 2024

Casal antidialético

Romance

(folhetim,
BRA, 2008),
de Guel Arraes.


 
 por Paulo Ayres

Os anos de 2007 e 2008 significaram um capítulo insólito para uma das duplas mais destacadas do audiovisual brasileiro: o pernambucano Guel Arraes e o gaúcho Jorge Furtado. Apesar de colaborarem em obras da televisão e do cinema, ambos desenvolveram trajetórias distintas na direção de longas-metragens. Quando assume a autoria de um projeto, Arraes se interessa por fazer comédia, enquanto Furtado gosta de comandar dramas — geralmente dramédias, mas não só. Então, houve um período em que ambos saem das suas zonas de conforto e realizam algo inédito nas carreiras: folhetins. Justamente o gênero que está entre a dramédia e a comédia, o meio do caminho entre o que os dois geralmente filmam. Furtado apresentou Saneamento Básico, o Filme (2007). Arraes, um ano depois, inovou com Romance. Projetos sintonizados até no gênero temático, pois são duas ficções de costumes. E se existe uma dose de metalinguagem como tempero para os dois enredos, é em Romance que essa característica se aprofunda mais. Usando o teatro como ilustração do que quase conseguiu, é como se um grande filme aparecesse por alguns segundos no escuro de um palco, mas as cortinas se fecham antes do seu registro efetivo.

A questão afetivo-sexual ganha os holofotes em Romance, desenvolvendo um assunto recorrente na filmografia de Arraes. Por mais que haja diferenças de ambientação entre seus longas, nota-se a presença de algo que transgride o que se entende por padrão amoroso almejado na fachada da moderna sociedade de classes e, de alguma forma, ocorre uma reordenação romântica de rota. Por isso, antes de falar de seu folhetim, é bom recapitular certos pontos que ocorrem nas suas comédias. Em O Auto da Compadecida (2000), a esposa do padeiro é a presença ardente que atrai amantes até ser ofuscada pela vinda de uma donzela à cidadezinha. Caramuru: A Invenção do Brasil (2001), por sua vez, é a experiência mais ousada nessa temática e possui um protagonista europeu que faz um trisal com duas irmãs indígenas — além disso, elas oferecem a “hospitalidade tupinambá” para marinheiros. Logo uma das irmãs fica para atrás e o casal restante passa a ter declarações de amor cada vez mais “sérias”. Lisbela e o Prisioneiro (2003) conta a velha história de um solteiro poliamoroso que se apaixona “de verdade” e, a partir daí, só tem olhos para a mocinha. Já O Bem Amado (2010) separa as expressões eróticas das irmãs Cajazeiras e as do casal jovem — ou seja, há duas tendências afetivas distintas e elas não se encontram.

O diferencial de Romance é começar com a tendência burguesa-amorosa para sacudi-la mais a frente. O primeiro ato, digamos assim, é quando Arraes cria uma introdução melosa de afirmação do casal, usando seu estilo de diálogos ágeis, às vezes em movimento de marcações pelo quadro. É o momento em que reina um pedantismo poético com ares de autorreflexão histórica. A tagarelice de frases feitas entre os atores Pedro (Wagner Moura) e Ana (Letícia Sabatella) comenta a lenda de Tristão e Isolda, a relação deles próprios e, de maneira presunçosa, a universalidade do amor sexual tal como os dois entendem que se dá na essência humana, de acordo com a particularidade que se desenvolveu nos últimos séculos. O duo da ficção, nessa dissertação declamada, é porta-voz do duo de roteiristas, Arraes e Furtado. Mais de três anos se passam, Pedro e Ana se reencontram num trabalho televisivo e o filme de Arraes finalmente encontra o tom certo ao entrar na rotina movimentada de bastidores. Mais do que comentar a ponte que muitos artistas fazem entre o teatro e a televisão, Romance satiriza a diferença artística de mundos distintos. Com efeito, o especial televisivo “Tristão e Isolda no Sertão” interessa menos por si mesmo — uma tragédia assim fica ridícula representada no contexto de um folhetim audiovisual, fora do contexto específico e presencial da peça teatral —, e interessa bastante como abalo para a experiência amorosa declamada e refletida, entre os níveis da atuação e da atuação na atuação. O sertão da Paraíba apresenta novos ares para se pensar as expressões da afetividade, graças a entrada em cena — nos dois sentidos — de Vladimir Brichta com um personagem (Orlando) e um personagem do personagem (José de Arimateia) — há também um terceiro personagem dele, o Tristão nordestino, de importância apenas protocolar para a trama.

Orlando é uma força considerável no enredo. A grande sacada da sátira edificante é fazer dele não apenas o pivô de um triângulo amoroso (ou quadrado...), mas trazer uma ambiguidade em sua composição que gera dúvida se há um sentimento sincero ou pura performance interesseira. Na maior parte do tempo não fica claro. Isso até o final, quando Arraes faz uma última brincadeira de metalinguagem e trai a si mesmo. Na superfície do texto, a liberdade criativa vence: Pedro, na função de diretor do especial televisivo, consegue ludibriar o produtor feito por José Wilker — e tudo aquilo que ele representa numa produção massificada, desde os anunciantes até a costumeira romantização artística visando a fidelidade do consumidor audiovisual. Não há happy end na ficção dentro da ficção. Entretanto, dentro da ficção que é Romance, Arraes coloca um final feliz bem pomposo e clichê. Não houve subversão, ou melhor, houve uma que até demonstra autoconsciência metalinguística, mas que sublinha a falsidade do apaziguamento redutor e triunfante. Em certa medida, lembra a autossabotagem que Quentin Tarantino fez no folhetim histórico Inglourious Basterds (2009). Na reta final de Romance, a contraditoriedade real que há em Orlando se dissipa. Pelo seu comportamento, ele parece, unilateralmente, um cafajeste e ganancioso. Deste modo, se estabelece um rumo fácil para o roteiro baseado na experimentação e suspensão de Ana, que estava ficando com os dois enquanto havia dúvida de quem escolher.

Enfim, se há um filme inteligente que se interessa pelos níveis de identidade do ser social se imbricando nas relações, há também uma ingenuidade que vai desfazendo o caminho de reflexões, para deixar tudo ao gosto do personagem de José Wilker, ou do seu equivalente no mundo real. Vitória dessa tradição romântica da arte e da outra referente ao tipo de relação afetiva, isto é, a relação binária, fechada, monogâmica. Orlando, o dialético terceiro incluído, um tertium datur, proporciona uma reflexão intensa na sua interação, mas logo é expelido na afirmação da estética metafísica.

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