sábado, 18 de maio de 2024

Maquiagem definitiva

Bingo:
O Rei das Manhãs

(folhetim,
BRA, 2017),
de Daniel Rezende.



por Paulo Ayres

É sugestivo que a operação realizada em Bingo: O Rei das Manhãs seja justamente expor a dualidade. Isso ocorre tanto no enredo, com a enésima historinha estruturada numa lição familista, como também na referência externa, pois o comentário histórico acontece quando o espectador associa esse reflexo com os acontecimentos do mundo real. É nessa segunda linha que o folhetim oferece algum fascínio.

Sejam quais forem os motivos para evitar trabalhar com os nomes de pessoas e empresas reais, o fato é que, nesse jogo de espelhos, obtém-se a exposição parcial da essência de uma determinada passagem histórica, em sintonia com o estilo característico desse objeto temático: a televisão privada brasileira (que usa sinal público) dos anos 1980 até certa parte da década de 1990. Período de esgotamento da autocracia burguesa e a busca televisiva por audiência testa altos níveis de tendência apelativa. (É claro que hoje em dia a essência da televisão privada continua igual, mas de modo menos descarado, mais regulado, quando comparamos a esse intervalo brasileiro de um quase vale-tudo.) Pois bem, o aclamado montador Daniel Rezende — Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) etc. — estreia na direção precisamente na função de selecionar as opções mais diretas numa encenação folhetinesca. Há um certo prazer simples, mas não irrelevante, nesse semi-biopic “não oficial” (e veremos, no fim do filme, de maneira decepcionante, que ele é “oficial” sim, no sentido limitante que isso remete), ao identificarmos esses duplos enquanto reflexos dos entes reais: Pedro Bial, como um mandachuva da TV Mundial, é a cara da Rede Globo mesmo; a TVP ironiza a emissora do Silvio Santos, que busca se estabilizar no posto de segundo lugar e tem menos receio em ser apelativa. Além disso, como “na TV nada se cria, tudo se copia”, a presença do gringo estadunidense, como instância controladora, serve também para evitar a leitura viralatista desse fenômeno histórico.

O Rei das Manhãs, a Rainha dos Baixinhos... um estúdio, uma plateia de crianças, produtores e patrocinadores babando no monitor de audiência... Tudo isso parece hoje, numa época de maior disseminação de séries e filmes com um “politicamente incorreto de almanaque” — vide The Simpsons (1989–), que tem até o Krusty —, algo reconhecido e anestesiado. E é mesmo na maioria dessas expressões. O diferencial de Bingo, portanto, é a necessidade de olhar esse tema no contexto brasileiro, vinculado a esse período histórico, reconhecendo os palhaços da tela nacional e como ela nos faz de palhaços. É por isso que os nomes não fazem muita diferença na proposta apresentada nessa sátira edificante. Assim como o próprio Bozo/Bingo é uma peça substituível nas engrenagens da mídia liberal.

Entretanto, o percurso da trama nos nega a saída da caverna sensacionalista para vermos inteiramente, através do espelhamento estético, todas as alienações apresentadas como determinações históricas. Não há exatamente uma mudança no seu conteúdo; o que há é um tratamento binário com um fio romântico, presente desde o início, que vai crescendo como uma bola de neve até ficar tão grande que a fração final do folhetim histórico se concentra numa moralização lacrimosa. A cena em que o filho de Augusto Mendes (Vladimir Brichta) liga para o pai no programa ao vivo — queixando-se, com voz chorosa, que ele brinca com todas as crianças, mas não tem tempo para o próprio filho — é uma jogada digna de novela mexicana da segunda divisão. O que é a Gretchen (Emmanuelle Araújo interpretando a única personagem direta, que não é um duplo), rebolando no meio de crianças, perto desse nível de sensacionalismo? Sensacionalismo quando está na chave edificante está valendo. Não há ironia.

Deste modo, Bingo oferece uma representação com antolhos. Orientado para defender uma determinada moral, o career feuilleton só ironiza e lamenta aquilo que aparece como obstáculo para o núcleo familiar de Augusto Mendes. Daí que a dualidade com um lado extraficcional (a relação de identificação com os entes historicamente reais) não é a mesma que há na diegese. Essa última dualidade se desenvolve como uma clivagem antidialética do condenável e do sacralizado. Ficamos sabendo nas informações do final que Arlindo Barreto, ex-ator da Pornochanchada e ex-Bozo, foi evangelizado (tornou-se cristão protestante). E, além disso, continua se fantasiando de palhaço, mas, desta vez, os palcos são igrejas. Um palhaço pastor. Imagine como isso poderia ser desenvolvido e também ironizado. Mas essa sátira não faz qualquer gracinha com esse desdobramento conciliador. Por isso, vemos o personagem de Brichta num típico dilema de identidade, em que limpar a maquiagem se insinua até como um ritual de humanização. Todavia, nunca vemos, de fato, algo além da máscara. Por baixo da maquiagem aparece outra. E, em relação a essa outra performance, fazem de tudo para a gente não rir e nem questionar.

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[0] Primeiro tratamento: 04/09/2017.
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