quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Teatro de marionetes

That Thing You Do! 
 
(folhetim,
USA, 1996),
de Tom Hanks.


 
por Paulo Ayres

Numa daquelas cenas em que uma determinada ideia de um filme é simbolizada, That Thing You Do! mostra, brevemente, televisores ligados numa loja de eletrodomésticos. Dois músicos, o “bobo” e o “talento”, observam um programa de TV e é comentado que os bonecos são marionetes. Em seguida, há uma proposta para um terceiro jovem, o “esperto”, ser o novo baterista de uma banda de garagem. Eis um caminho de deixar de vender produtos feitos pela atividade fundante e se tornar o produto de espetáculo, que, por sua vez, também estimula uma cadeia de trabalho material em discos e objetos licenciados. Escrito e dirigido por Tom Hanks, That Thing You Do! reflete em sua estrutura narrativa uma meta abordada em seu próprio objeto temático, isto é, a padronização que visa a eficiência de mercado, sem perder um certo retoque artesanal.

Hanks, como Mr. White, é a quinta — ou sexta — ponta do grupo e se apresenta, ironicamente, como o impulsionador da banda.  O “bom moço” de Hollywood é o pai que não se contentou em apenas vigiar os filhos de trás das câmeras, mas também é o autor sincero que se expõe como parte de uma engrenagem que manipula as obras artísticas como ingredientes mercantis. Não é sem razão, aliás, que o cozido (stew) é outra comparação apresentada na trama.

The Oneders

Guy Patterson (Tom Everett Scott) era um jovem trabalhando para o pai num emprego monótono até que as circunstâncias o colocam tocando bateria num concurso musical. Fã de jazz e empolgado por estar tocando em público, ele imprime uma batida mais rápida para a balada “That Thing You Do”. A canção ganha uma exclamação (metafórica e literal no título do filme) e progressivamente passa de êxito local no interior da Pensilvânia para os primeiros lugares das paradas norte-americanas. Vira um dos refrãos da temporada e a banda é vista como uma das apostas para desbancar o quarteto de Liverpool (carro-chefe da Invasão Britânica).

A gravação do disco acontece dentro de uma igreja e isso também é bastante ilustrativo. Não se trata da contracultura, que se destacará no Maio de 68 e no Festival de Woodstock (1969), expressando um anticapitalismo romântico de esquerda. O estilo retratado no folhetim histórico é de uma juventude que, mesmo em fase de incorporação de tendências mais ousadas, não se desvencilha da imagem de menino de terno pronto para ir à igreja. A própria trajetória do rock reflete isso, afinal estamos na época predominante daqueles subgêneros que nomearão de iê-iê-iê na versão sintetizada no Brasil.

Hanks conduz a sua sátira edificante sobre o sucesso meteórico com uma habilidade da “escola” Spielberg-Zemeckis, dois cineastas com quem compartilha um certo perfil artístico — o ator protagonizará alguns filmes de Spielberg e já havia trabalhado com Zemeckis na dramédia Forrest Gump (1994).

The Wonders

O que é mais encantador em That Thing You Do! é o seu crescente processo de desencantamento. Essa dialética funciona na medida em que o mundo da indústria fonográfica e do setor de espetáculos são retratados nos seus aspectos atraentes e repulsivos. Hanks cria a Play-Tone, uma gravadora fictícia, para refletir a estrutura hierárquica desse segmento do show business. Há uma “galáxia” de artistas em turnê, ilustrando tendências variadas daquela cena musical, os aparatos que fazem aquela máquina funcionar e, por fim, o aparecimento do burguês rústico que é o fundador da empresa, Sol Siler (Alex Rocco) — na verdade, esse é o momento de ápice na trajetória da banda The Wonders e dessa sátira, quando há o encontro, perante as lentes da imprensa liberal, entre o capitalista e aquela mercadoria viva. Uma sequência que mostra o topo com flashes e um leve mal-estar.

Além disso, não há outro momento mais significativo porque é praticamente um filme sem clímax — ou o que parece ser um se dissolve discretamente. Guy Patterson, após uma noite de bebedeira, acorda apressado, pois a banda se apresentará ao vivo num programa de televisão. Jimmy Mattingly II (Johnathon Schaech), o vocalista, está vomitando, talvez com uma virose. Problema? Será que o acaso, que tanto colaborou para eles chegarem aonde chegaram, pregaria uma peça no momento da grande apresentação? Não. Hanks, criativamente, faz dessa exibição televisiva apenas uma amostra do poderio da direção audiovisual. Vemos os bastidores do programa selecionando imagens, montando o espetáculo ao vivo. A regra roteirística de forçar um clímax não dá as caras. Em vez disso, temos apenas uma sutil metalinguagem e um show de despedida.

É também uma satirização que evita vilanizar. Sol Siler, Mr. White ou o vocalista Jimmy não preenchem o perfil de vilão. Mesmo esse último, por mais que seja ressaltado como arrogante na reta final, mantém-se no nível tipificado que o career feuilleton estabelece de maneira generalizada. Contudo, infelizmente, o debutante Hanks sublinha o outro extremo no desfecho: Guy e Faye (Liv Tyler), o mocinho e a mocinha, realizam um epílogo deveras açucarado — e lembrando que não é exatamente conciliatória a letra do power pop “That Thing You Do!”.

The Heardsmen

A banda The Wonders dura apenas o verão de 1964. Apenas mais um caso de one-hit wonder. E That Thing You Do! permite que se veja também o lado ridículo de todo esse processo, mesmo sob os holofotes de se tornar um rock star — aliás, nunca saberemos o nome do baixista original, tão substituível quanto um figurino. Enquanto isso, a maturidade artística é ilustrada num ambiente mais escuro e escondido, com um jazz tocando. Pena que, sendo tão contido em certos aspectos, o folhetim elaborado por Hanks soe também como uma romantização da suposta ingenuidade cultural nos Estados Unidos. Uma “inocência” que, por exemplo, não reflete os conflitos do racismo estrutural. E até relaciona a Guerra do Vietnã com o Mickey Mouse, mas de maneira distinta ao que foi feito em Full Metal Jacket (1987), um drama realista de Kubrick.

= = =
[0] Primeiro tratamento: 24/01/2018.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário