sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Virada realista

Domingo

(dramédia,
BRA/FRA, 2018), 
de Clara Linhart
e Fellipe Barbosa.
 


por Paulo Ayres

A dramédia histórica de Clara Linhart e Fellipe Barbosa expõe a sua tese também no título. A constatação da falsa aparência desse dia atípico ocorre num diálogo no meio do filme: o que parece ser um domingo é, na verdade, um sábado com cara de domingo. A reunião familiar da matriarca Laura (Ítala Nandi) se passa no feriado do primeiro dia do ano, no interior gaúcho, enquanto Lula tomava posse para o seu primeiro mandato presidencial em Brasília. Então, por informação extrafílmica, sabemos que a desorientação é ainda maior, pois 1 de janeiro de 2003 era uma quarta-feira. E, também por informação histórica, ao olharmos Domingo do posterior 2023, vemos o quanto ele é realista em expor as tendências contraditórias que se desenvolveram nas duas últimas décadas.

Assim como não há domingo em Domingo, mas apenas a aparência de domingo, a harmonia laboral e familista é somente uma fachada. E, além do microcosmo retratado, há a questão sobre o que é, de fato, continuidade e descontinuidade na virada política no nosso país de capitalismo dependente. A primeira fase do petismo no poder (compreendendo os quatro governos de coalizão PT-PMDB até o golpe parlamentar de 2016) inicia uma expressão da conciliação de classes que, ao mesmo tempo, estimula o antagonismo estrutural e incontornável. Além disso, não se trata de qualquer família nuclear, mas uma da classe burguesa, aparentemente de pequeno porte. Num ambiente familiar como esse está justamente o embrião que formará o núcleo duro do bolsonarismo tempos depois.
 
É Bete (Camila Morgado ligada no 220) que simboliza melhor as contradições do reformismo, cuja determinação classista também é, ideologicamente, pequeno-burguesa. Aliás, os três personagens que demonstram alguma euforia com a posse do presidente de origem operária estão, de alguma forma, anexados à família, sem se identificar totalmente com ela — o artista divergente, a milf efusiva e o professor de tênis. Mesmo porque, sendo inegável que o governo protagonizado por um partido socialista (social-democrata) é um tempo de mudanças progressistas no país, também é preciso entender que os avanços se restringiram numa configuração rebaixada, social-liberal. Nesse sentido, Domingo acerta no retrato, sutil e intenso, das duas empregadas domésticas. A mãe (Inês) e a filha (Rita) refletem a conquista de um grau maior de liberdade, mas, também, a camada popular que não chegou ao nível de protagonista. Domingo apresenta aquilo que faltou no drama edificante Que Horas Ela Volta? (2015), feito às vésperas do golpe — reviravolta que gerou o Governo Temer e, posteriormente, abriu caminho para um movimento de fascismo liberal.

Linhart e Barbosa conduzem o drama realista numa encenação que equilibra o tom levemente exagerado e o olhar paciente da câmera, formando vários planos-sequência. Às vezes, as cenas resultam em belos quadros estáticos ou de baixa mobilidade, mesmo quando enquadram situações nada solenes. O filme se mantém dosado por esse distanciamento e, ao mesmo tempo, gera atritos nas interações em vaivém. Uma dinâmica de corpos em deslocamento, cujo ápice é a última sequência, a da festa de quinze anos de Valentina (Manu Morelli), quando a ausência de trilha incidental dá lugar à valsa de Dmitri Shostakovich — a mesma que embala a rotina de máscaras familiares em Eyes Wide Shut (1999). Momento em que a família de Laura se exibe para convidados, mas os apagões iluminam o lado frágil e patético do evento pomposo.
 
Buscar o significado preciso de algumas metáforas pode ser uma tentativa vã. Domingo tem um leque de cenas que deixam em aberto a leitura de que a política pode estar sendo simbolizada. Por exemplo, as imagens de José (Clemente Viscaíno), o velho operário rural, lidando com as ovelhas, manifestando a sua admiração por Laura e até quando morre ao tentar restabelecer a energia da casa. No entanto, independente disso, os fatos que ocorrem diretamente no texto são, por si mesmos, espelhamentos de tendências essenciais. No período que se inicia, o casarão decadente continuará sendo o casarão decadente dessa ou outra família. E, mesmo falando de política nas entrelinhas, Domingo é, em primeiro plano, sobre relações laborais e costumes familiares. Enquanto ficção histórica, é uma career dramedy.

O roteiro de Domingo foi criado por Lucas Paraízo em 2005. Deste modo, o projeto se desenvolveu junto com o seu objeto temático e tem o conhecimento post festum do que resultaria os fenômenos sociais envolvidos. É possível identificar as tendências que, ulteriormente, reconhecemos de maneira mais enfática, em lutas de classes intensificadas, mas que, aqui, insinuam uma nova etapa histórica através de personagens típicos num evento doméstico. Importando também a leitura que essas personagens fazem dos acontecimentos nacionais, com matizes entre a adesão e o repúdio. Curiosamente, depois da realização do filme e de quatro anos de terra arrasada do Governo Bolsonaro-Mourão, está começando um terceiro mandato de Lula, representando a esperança de melhorias. E, agora sim, a posse aconteceu num domingo.
 
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[0] Primeiro tratamento: 02/12/2019.
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