sexta-feira, 17 de maio de 2024

Arquitetura realista

Gisaengchung

(dramédia,
KOR, 2019),
de Bong Joon-ho.
 


por Paulo Ayres

Eu tentei expressar um sentimento específico da cultura coreana. As respostas que eu tive de diferentes audiências foram basicamente as mesmas. Essencialmente, todos nós vivemos no mesmo país chamado capitalismo.
(Bong Joon-ho)

É bem sintomático que o maior fenômeno cinematográfico dos últimos anos seja um filme que exponha as lutas de classes de forma tão acessível quanto sofisticada, porém, é mais significativo ainda que tal obra venha de uma nação que é usada como propaganda, na ideologia liberal, de nação próspera. Reza a lenda que esse país asiático é exemplar por ter sido um país terceiro-mundista e dependente que virou uma potência industrial. A Coreia capitalista, nesse sentido, é tanto uma república quanto um tipo de marca — a bandeira até lembra o símbolo da Pepsi —, uma referência positiva e vizinha do “inferno”, segundo o  imaginário do status quo. Obviamente que uma pesquisa mais aprofundada desmonta tudo isso, mas estamos falando de imagens ideológicas mais imediatas. Para abalar essa camada de senso comum é necessário um “míssil” extremamente eficaz. Gisaengchung aparece no final da década passada cumprindo essa função.
 
O que faz a dramédia de Bong Joon-ho ser um espetáculo de longo alcance é a sua flexibilidade como coisa vendável. Um vencedor da Palma de Ouro que se adapta às salas de cinema de blockbuster. Um daqueles produtos raros que consegue, de fato, uma meta em departamentos mercadológicos: o chamado sucesso de público e crítica. Desse modo, “Parasita” faz jus ao jogo de significados do seu título e acrescenta mais um: o de drama realista que parasita (ou “contraparasita”) o sistema do showbiz, penetrando, com sagacidade, os seus canais de repercussão expansiva.
 
No enredo, Gisaengshung se desdobra como um percurso de urbanidade verticalizada em que a própria cidade de Seul reflete os desníveis da casa dos ricos e vice-versa. Na dialética de Bong, ademais, cada sutileza serve para ajustar os personagens aos espaços e às novas funções empregatícias, tudo suficientemente valorizado nas sequências para revelar um cotidiano de interdependência. E é aí que está o grande ingrediente: dois núcleos familiares (na verdade, três) sobrepostos de maneira a transbordar o conteúdo familista, pois esse se mostra na sua maior fragilidade e contradição; o fetiche da família nuclear é, sempre, em algum grau, antifamília (dos outros, de fora). Na sucessão frenética de acontecimentos, o olhar do cineasta sul-coreano não elege bons e maus, alcança, isso sim, o ritmo de entradas e saídas por escadarias que revelam como a estrutura — concreta, bem concreta — é ela mesma a condição de mazelas e desumanidade. A Coreia capitalista é evidenciada enquanto uma residência maior. Saímos do buraco da vizinhança miserável (com domicílios, em parte, abaixo do nível da rua) e nos dirigimos com a família pobre de Kim Ki-taek (Song Kang-ho) para a mansão de bairro abastado, o andar de cima. Um belo plano de uma rua em subida, na periferia, indica a ligação de ambientes tão distintos quanto em dependência exploratória.
 
Bong, além disso, não tem receio de comentar seus próprios procedimentos. Kim Ki-woo (Choi Woo-shik) elogia um desenho abstrato do filho pequeno da madame Choi Yeon-gyo (Cho Yeo-jeong), enquanto Kim Ki-jung (Park So-dam) explica “psicologicamente” o significado de alguns desenhos para a mesma. Ironizar a arte niilista e a psicologia de botequim, aqui, serve para ironizar a metáfora que não tem os pés no chão, que flutua na arbitrariedade. Essa crime dramedy, diferentemente, se interessa por degraus concretos para montar a estrutura metafórica. O próprio arquiteto da casa luxuosa é referenciado em diálogo. A arquitetura da casa é opressiva em certo sentido por ser uma objetivação em contexto profundamente alienado; e o mesmo vale para o conjunto urbano da qual aquela casa é apenas um elemento. Complementando essa abordagem, Chung-sook (Jang Hye-jin), a mãe pobre e nova governanta, reflete que a gentileza e simpatia dos ricos têm uma base material de conforto por trás e, por consequência, concluímos que o mesmo vale para a trambicagem dos pobres em questão. Dito de outro modo, Bong salienta, com tais argumentos, que enquanto os degraus de disputa por sobrevivência existirem os atos de empurrões escada a baixo continuarão, independente de quem são os agentes singulares envolvidos.

Então, reforçando a indicação de que estamos todos interligados, Gisaengshung instala uma chuva na Coreia capitalista. Não uma chuva de sapos, como na dramédia Magnolia (1999) e sua conciliação comunicativa. Bong usa o fenômeno natural para salientar o aspecto alienado da forma de sociabilidade retratada. É o momento que fazemos o percurso reverso e vamos descer, junto aos três personagens que retornam à periferia, como se escorrêssemos com a água da chuva para o lado baixo da cidade. Da visão requintada da sala rica, através da parede de vidro, fitando a criança acampar no quintal em meio à chuva, “rolamos” em direção à inundação. Nessa dinâmica, a miséria presenciada e a consciência de desigualdade social geram um impacto, na associação mental do país retratado, mais pungente do que um videoclipe açucarado de k-pop.

Como cada família nuclear é uma espécie de búnquer na sociabilidade dividida em classes, o búnquer literal que há embaixo dos ricaços eleva ao quadrado a metáfora da simbiose alienante. A cereja do bolo, aliás, é que a antiga governanta, Gook Moon-gwang (Lee Jung-eun), explica que muitos bunkers foram construídos por sul-coreanos com medo de ataques bélicos que possam vir da Coreia socialista. Um abrigo anticomunista tendo serventia apenas como um esconderijo para os males capitalistas, e fazendo com que seu hóspede secreto — caçado por agiotas, sem perspectiva de aposentadoria e vivendo de restos — chegue a um ápice da coisificação e tenha uma estranha relação de reverência e comunicação com os patrões, “deuses” do andar de cima. Ainda estamos numa dramédia lúmpen de golpe, mas essa “caverna” moderna transmite um tom sombrio que beira um mundo invertido de ficção especulativa; lembra en passant o filme estadunidense Us (2019), de Jordan Peele, outra obra realista do mesmo ano.

Logo, o recurso do “cheiro de pobre”, usado por Bong como um acelerador do confronto classista imediato e fatal, não é um dispositivo inverossímil. Adequa-se ao nível metafórico pretendido, onde até certas determinações organicamente mais básicas — uma composição com odores, tosses, volúpia etc. — estão rearranjadas socialmente na “terceira natureza”, o reino da propriedade privada, de maneira a atrair ou contrapor pessoas como “espécies” sociais em antagonismo. Junto à opressão urbano-arquitetônica, Gisaengshung percebe corpos humanos boiando ou colidindo uns nos outros em busca de um lugar ao sol... no jardim aburguesado.
 
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