domingo, 28 de abril de 2024

Tempero naturalista

Estômago

(dramédia,
BRA/ITA, 2007),
de Marcos Jorge.

 


por Paulo Ayres

A onda de expansão de universos ficcionais, que está em alta no cinema hollywoodiano, chegou ao Brasil. São continuações — às vezes prequelas — que aparecem depois de muito tempo, quando ficou evidente que há uma grande demanda de espectadores com interesse em ver os destinos ou origens de determinadas personagens. Entre os filmes brasileiros que irão estrear neste ano, está a sequência de Estômago. Não se sabe se o naturalismo estará no novo banquete cinematográfico servido pelo paranaense Marcos Jorge, mas no filme de 2007 é assim que ocorre. É uma dramédia que não esconde isso e essa sinceridade é um dos ingredientes que compõem sua narrativa suculenta, que estimula o apetite, mas que causa uma indigestão.
 
Nem sempre quando há uma referência a algo orgânico, a algum animal, no título de uma ficção significa que há naturalismo, mas em Estômago o título direto e anatômico anuncia essa abordagem. Nesse sentido, é compreensível que esse filme sobre gastronomia é uma iguaria estética que agrada o “paladar”, pois não é um banquete bem açucarado e habitual como o drama edificante Chocolat (2000). Por outro lado, Estômago é um prato exótico e também tóxico. A vigilância sanitária (e estética) encontra problemas. A extrema simplicidade de Raimundo Nonato (João Miguel) — vulgo Alecrim — é cativante somente até certo ponto, pois, em sua ignorância e rusticidade introvertida, há uma perda da inocência em sentido serenamente conspirador, possessivo e animalesco.

Seria uma degradação niilista se predominasse um clima de pesadelo, um clima de mundo delirante ou desabando. Embora haja forte carga subjetiva em parte das cenas com a narração em off do protagonista, é de forma bem objetiva que é servida a trama. É como se fosse dois filmes criminais imbricados, ao mesmo tempo entrelaçados e mantendo autonomia relativa: Nonato na prisão, Nonato fora da prisão, trabalhando e conhecendo a cidade grande. Se fosse só pelo drama fora da prisão, poderia ser uma ficção de mistério, mas essa parte se subordina à outra, na cadeia, fazendo da obra uma dramédia lúmpen. Aí que confirma o objetivismo. A própria subjetividade se expressando em off, de Nonato, ilustra a objetividade audiovisual de caráter descritivo. Ele é o sociólogo amador que contribui com o olhar sociológico, em sentido pejorativo. Dividindo a cela com um pequeno grupo de presos (pequeno para os padrões desumanos de superlotação carcerária), ele interage de forma distanciada, desconfiada, servindo na aparência e tramando a conquista de poder no local — que está com Bujiú (Babu Santana). Seus companheiros de cela são como ingredientes e os apelidos reforçam esse distanciamento coisificador.

Cronologicamente, no enredo, é a parte fora da prisão que vem primeiro. No entrelaçamento de tempos, então, o clímax de conquistar seu objetivo no crime organizado, na cadeia, ocorre quando é revelado o crime hediondo que ele havia cometido antes para ser preso. Ou seja, todos os homicídios que há nesse drama naturalista estão colocados numa posição triunfante de contemplação maquiavélica, de toque final, de assinatura artística, de sobremesa gourmet de chefe de cozinha.

Resta entender por que um filme tão indigesto assim consegue agradar o gosto de bastante gente. Primeiramente, ele usa bem, de forma astuta, uma tática audiovisual que é usada em publicidade de alimentos e em vídeos curtos de receitas no TikTok e no Instagram. São os momentos em que há uma suspensão narrativa para mostrar uma pequena montagem, como um encanto com musiquinha — que às vezes tem assobio e outras um gemido hipnótico —, mãos mexendo com ingredientes, fazendo massa, cortando, fritando etc. Um certo prazer em ver (fotografia de Toca Seabra), de maneira rápida, a atividade fundante do âmbito culinário e aquilo que ela cria. Junto desse adorno que almeja fazer o espectador “comer com os olhos”, há um contraste, também bem elaborado e filmado, de mostrar uma espelunca convidativa de um cotidiano pobre — mosca, bêbado e coxinha. Quando Nonato deixa de ser cozinheiro superexplorado para ser cozinheiro explorado — com carteira assinada — num restaurante, o contraste que se busca é entre sua personalidade bem caipira e Giovanni (Carlo Briani), o burguês tagarela que lhe dá o novo emprego. Nesse momento, a dramédia se esbalda em criar humor na interação, pois o ítalo-brasileiro tenta ser o sensei do imigrante nordestino. No entanto, essa mistura não esconde que, nessa parte fora da prisão, a coisificação estética do naturalismo também está presente. Em certas falas e no painel distanciado. A única coisa que sabemos sobre o interesse amoroso, Íria (Fabiula Nascimento), é que ela é prostituta, stripper e adora comer. Não basta fazer uma piada sobre o macarrão à putanesca, Marcos Jorge filma um plano esquisito em que a moça devora o macarrão, na cama, parecendo o comportamento de bicho.

Pessoas mastigando, discursos mastigados... Se um naco de gorgonzola e um pedacinho de goiabada, ou formiga frita, viram uma obra de arte no prato, não importa. O fato é que Estômago, através de uma narrativa atraente e filmada em Curitiba, serve uma comida fria e sebosa.

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