domingo, 9 de junho de 2024

Imitação da vida

Tacones Lejanos

(dramédia,
ESP/FRA, 1991),
de Pedro Almodóvar.



por Paulo Ayres
   
Toda dramédia é uma protosátira, uma quase-sátira. Isso significa que é um gênero dramático que possui uma profundidade de composição, de reprodução detalhada, mas com uma dose de grau satírico que não é predominante. Quando Pedro Almodóvar passou a ter uma preferência pelo drama, ele elege esse subgênero ficcional como uma forma de se manter em contato com a veia satírica do início —  os quatro primeiros longas do cineasta espanhol são sátiras, assim como Mujeres Al Borde de un Ataque de Nervios (1988), Kika (1993) e Los Amantes Pasajeros (2013). E se uma dramédia é praticamente uma “imitação da sátira”, Tacones Lejanos é uma dramédia que traz a questão da imitação também no seu enredo. O filme possui uma profundidade psicológica com cores e adornos saturados do estilo kitsch.

O desdobramento interessante que há na película de 1991 se dá na dialética parcial com sua temática das relações sociais com níveis de simulação. Almodóvar desenvolve um jogo de espelhos num determinado círculo de convivência, afetivo e laboral, tendo como componente central a relação de mãe e filha ao estilo de Imitation of Life (1959), de Douglas Sirk. Depois de ser uma mãe ausente por quinze anos, a famosa cantora Becky del Páramo (Marisa Paredes) reencontra sua filha Rebeca (Victoria Abril), que a tem, ao mesmo tempo, como modelo de vida e competidora para superar; Manuel (Féodor Atkine), o genro, a vê como uma versão melhorada da esposa; e Femme Letal (Miguel Bosé) é uma drag queen com um show em que imita Becky. Quando esses quatro se juntam, aliás, na sequência em que a família vai ao espetáculo musical do transformista, Almodóvar realiza uma intensa e discreta troca de saudações, desconfortos, malícias e menosprezos.
 
Ficção criminal, Tacones Lejanos mostra o assassinato de Manuel como um ponto que expõe a relação conturbada entre mãe e filha, colocando as duas lado a lado como principais suspeitas do homicídio — uma terceira suspeita, rapidamente descartada, é Isabel (Miriam Díaz Aroca), uma amante de Manuel e tradutora de libras no telejornal em que Rebeca é apresentadora.
 
A intenção da dramédia de mistério, então, vai além de esclarecer quem das duas é a assassina, sendo essa a meta da investigação policial conduzida pelo juez Domínguez — a identidade por trás de Femme Letal, a propósito, é um sujeito que faz da encenação uma tática e modo de vida; uma carta inverossímil no contexto desse jogo almodovariano, no entanto, funcional com a temática. O foco está na outra camada: aquela em que Rebeca e Becky colocam as mágoas para fora e chegam a uma reconciliação. Mesmo porque estamos num drama edificante e não num drama realista como Todo Sobre Mi Madre (1999). Neste último se forma um pequeno círculo familiar-comunitário como superação afetiva, não se fechando num acordo familista redentor como Tacones Lejanos. Por outro lado, o ciclo de disfarces continua ao indicar que Rebeca será mãe e construirá sua família nuclear no pacto de encobrimentos. O talento de Almodóvar, aqui, se mostra parcialmente: refletir os possíveis contornos para personagens instigantes em suas incoerências, imperfeições e desejos de reparação.

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[0] Primeiro tratamento: 06/06/2021.
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