
Os Saltimbancos Trapalhões
(farsa,
BRA,1981),
de J. B. Tanko.
de J. B. Tanko.
por Paulo Ayres
O circo é mais que um espetáculo itinerante que transporta uma tradição artística, é uma fronteira que pode abrigar uma lumpenização dos trabalhadores. Embora esse processo tende a ser dissolvido pela formalização jurídica desses empreendimentos, trazendo leis trabalhistas e outras como mediações, por outro lado, no interior brasileiro, a imagem avulsa e informal do mundo circense se mantém pela tendência oposta da flexibilização liberal-econômica e da constante massa de desempregados. Num ano como 1981, então, o espetáculo underground do circo tinha uma aura ainda mais marginal. É o ano em que foi lançado Os Saltimbancos Trapalhões.
Sendo o espetáculo circense um dos embriões da identidade dos Trapalhões, é compreensível que um enredo que tenha esse mundo como tema deixe o quarteto bem à vontade, caindo como uma luva para as performances dos humoristas. Curiosamente, porém, isso não se dá como um encaixe imediato. A obra máxima da filmografia dos Trapalhões possui uma narrativa com desníveis e gradualidade de ritmo, mas, o que seria um defeito profundo em outros contextos, funciona como uma contraditoriedade fluente por causa da contundência do material que varia e do final aberto. É possível fazer uma analogia com o velho calhambeque do quarteto, observando que o próprio veículo em deslocamento é um fator que modifica o ambiente do enquadramento. Os quatro pobretões, e seu cachorro Bob, injetam uma vitalidade farsesca por onde passam, nas interações que estabelecem. Assim como a monotonia estava matando, aos poucos, o Circo Bartholo, cada encenação morna parece que vai impedir a farsa, deslocando o gênero satírico para algo menos estilizado. Até que os quatro contrarregras saem dos bastidores e passam a ser a atração principal do circo. Um ponto que pode ser considerado a virada na trama, no ritmo, na superação da passividade, é quando Didi inverte o número de hipnose do ilusionista Assis Satã (Eduardo Conde). Esteticamente, o clown deixa de ser mero objeto de intervalos e passa a predominar como essência desse mundo. No texto direto, por sua vez, os quatro passam a ser recursos laborais superexplorados.
Sendo o espetáculo circense um dos embriões da identidade dos Trapalhões, é compreensível que um enredo que tenha esse mundo como tema deixe o quarteto bem à vontade, caindo como uma luva para as performances dos humoristas. Curiosamente, porém, isso não se dá como um encaixe imediato. A obra máxima da filmografia dos Trapalhões possui uma narrativa com desníveis e gradualidade de ritmo, mas, o que seria um defeito profundo em outros contextos, funciona como uma contraditoriedade fluente por causa da contundência do material que varia e do final aberto. É possível fazer uma analogia com o velho calhambeque do quarteto, observando que o próprio veículo em deslocamento é um fator que modifica o ambiente do enquadramento. Os quatro pobretões, e seu cachorro Bob, injetam uma vitalidade farsesca por onde passam, nas interações que estabelecem. Assim como a monotonia estava matando, aos poucos, o Circo Bartholo, cada encenação morna parece que vai impedir a farsa, deslocando o gênero satírico para algo menos estilizado. Até que os quatro contrarregras saem dos bastidores e passam a ser a atração principal do circo. Um ponto que pode ser considerado a virada na trama, no ritmo, na superação da passividade, é quando Didi inverte o número de hipnose do ilusionista Assis Satã (Eduardo Conde). Esteticamente, o clown deixa de ser mero objeto de intervalos e passa a predominar como essência desse mundo. No texto direto, por sua vez, os quatro passam a ser recursos laborais superexplorados.
O contraste simbólico de mesas é objetivo: de um lado a mesa miserável que só tem macarrão, sem molho e nem mistura; do outro a mesa do dono do circo, Barão (Paulo Fortes), repleta de dinheiro. Se em outros filmes dos Trapalhões há a figura do rico do bem — e eles próprios, às vezes, se tornam ricos no final —, em Os Saltimbancos Trapalhões o foco está na exploração laboral. Não há nenhum subterfúgio para disfarçar a relação entre as classes sociais. Há inclusive um olhar sobre as contradições dentro da classe dominante. A ganância rompe os acordos entre o Barão e o mágico. “Quem tem poder tem dinheiro e quem tem dinheiro tem poder” é a conclusão óbvia apresentada quando os vários desentendimentos indicam que o “barão” é quem está com o capital. A canção “Todos Juntos” sinaliza não só a consciência de classe, mas também uma vitória classista momentânea quando dezenas de trabalhadores culturais marginalizados enfrentam o burguês, conseguindo a coletivização do circo.
Se fosse só isso, um panfleto assim, seria mais uma sátira superficial de J. B. Tanko. Ficaria no nível idealista do movimento utópico dos artistas e peões que retrata. É preciso um olhar que vá além dessa manobra, para não petrificar uma conquista desse tipo na sociedade capitalista. No caso, o olhar é o do burro. As lágrimas do burro. A canção “Piruetas” retorna, assim como o videoclipe — incluindo as sombras expressivas do quarteto e do cachorro na lona. Como uma espiral, a magia festiva do circo continua, mas triste e feliz ao mesmo tempo, e, assim, esse espetáculo de Tanko permanece aberto.
Os Saltimbancos Trapalhões mostra duas fugas de tipos diferentes. Uma é quando o quarteto foge junto com Karina (Lucinha Lins), a filha do dono circo, para se tornar artistas de rua com liberdade... a liberdade informal da carência e da perseguição do racionalismo formal. A outra fuga se dá no mundo da imaginação e na aspiração de fazer parte de Hollywood. Os Trapalhões, na época, eram uma trincheira do cinema nacional competindo nas salas com filmes gringos e, aqui, vão ironicamente na casa do adversário. A equipe de Tanko foi filmar nos Estados Unidos e os Trapalhões, criativamente, faz do turismo uma performance de apropriação de signos estadunidenses. Tudo ganha ainda uma camada a mais de significado na sequência do pesadelo de Didi. Um pesadelo hollywoodiano do artista terceiro-mundista. Perto daquelas produções dispendiosas e dominantes, aliás, até um dono de empresa artística, como Renato Aragão, parece um tipo de saltimbanco tentando resistir numa fatia de mercado — embora Os Saltimbancos Trapalhões, como sátira realista que é, ironiza o anticapitalismo romântico do estilo de vida dos saltimbancos. Ser artista lúmpen é um tipo de rebeldia que traz privações e limitações artísticas. Por isso a imagem do circo como espaço coletivo de resistência se sobressai, indicando também que o máximo que se pode conseguir num movimento pequeno assim é uma comunidade utópica, que se desloca para se manter em condições de sobrevivência.
Contando com a adaptação musical que Chico Buarque fez da peça italiana (1976), Os Saltimbancos Trapalhões é uma alegoria infantil com maturidade estética. Se o número musical no picadeiro — com a gata, a galinha, o cão e o burro — aparenta ter o nível de um programa pueril, o cotidiano circense dos bastidores, por outro lado, procura desmontar as fantasias, nos dois sentidos. Um momento único nessa filmografia. Algo que não se repetiu nem em outros filmes de circo de Aragão: O Mistério de Robin Hood (1990) e a nova adaptação Os Saltimbancos Trapalhões: Rumo a Hollywood (2017). Em certo sentido, então, o circo foi adulterado com o tempo.
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