(tríler,
BRA, 2007),
de José Padilha.
por Paulo Ayres
O primeiro Tropa de Elite tem um caráter de semeador de discórdia. A princípio, não há problema em almejar a polêmica, cutucar questões delicadas, ser ousado em pontos que muitos preferem o discurso fácil. Nessa meta audaciosa, portanto, está uma qualidade do filme, ainda que as coisas tenham saído de forma estabanada. Alçado à fama com um documentário humanista polêmico — Ônibus 174 (2002) —, Padilha busca um tom próximo da objetividade documental para estruturar sua narrativa. Faz um esforço de tentar entender um mundo que também é vilanizado no imaginário de parte da sociedade, mais especificamente no pensamento de esquerda. Há até algumas pessoas de esquerda que não consideram policiais como trabalhadores, sendo que são servidores tanto quanto professores, juízes e assistentes sociais. No entanto, nessa tentativa louvável de se aproximar do objeto, o realismo almejado transborda em hiper-realismo. Tropa de Elite é um drama naturalista.
Do produto acabado não se pode escapar. Até se pode pesquisar sobre os diversos tratamentos que o roteiro sofreu, comentando o caminho percorrido, os pontos cortados e alterados. Do escrito de Padilha e do ex-policial do Bope Rodrigo Pimentel — autor do livro (2006) que é a base do projeto — até a lapidação de Bráulio Mantovani. É possível especular se tudo seria diferente se o aspirante Matias (André Ramiro) fosse o narrador em off, por exemplo. A questão, todavia, é que as escolhas já foram feitas e agora são incontornáveis. Quem narra é o Capitão Nascimento. E se é verdade que vários personagens bem problemáticos protagonizam e até narram ficções, uma narração institucional como a do Nascimento é atípica. É como se Full Metal Jacket (1987), de Stanley Kubrick, fosse estruturado em torno do Sargento Hartman e ele tendo a voz da narração em off. Não apenas isso: é como se esse Sargento Hartman tivesse uma aura cool, um discurso conceitual e moralizante-punitivo, não morresse e terminasse praticando torturas e vingança fatal como clímax da trama. Bizarro? Tropa de Elite chega a esse nível estúpido, mesmo se considerar a hipótese mais provável de que a equipe de Padilha não teve a intenção de fazer apologia de tortura e massacre policiais, e sim denunciar. Nessa narração se encontra uma divisão binária: o mundo corrupto e a voz imaculada. Nascimento é mostrado como alguém já completo em sua personalidade monolítica. Ele fala solenemente sobre a transformação de Matias, mas ele mesmo não se transforma no desenvolvimento do enredo. Nascimento é uma presença metafísica fazendo um mapeamento sociológico do Rio de Janeiro.
O naturalismo de Tropa de Elite é atravessado pela flexibilidade dessa dose de subjetividade feita pelo narrador em primeira pessoa Esse tipo de naturalismo subjetivo, levemente subjetivo, também é chamado de impressionismo. No audiovisual, ademais, é possível uma dualidade em que a objetividade narrativa se mantém sólida nas imagens, enquanto a voz em off funciona apenas como notas de rodapé. É o que acontece aqui. Nascimento, o guia de frases feitas, pega o espectador pela mão e fala sobre o “sistema”. Mas, diferente de Morpheus, de The Matrix (1999), o capitão é como um Agente Smith escolhendo um jovem continuador de seu legado de busca da ordem. Enquanto o vilão do filme estadunidense fala de seres humanos como vírus, no vocabulário de senso comum de Nascimento, por sua vez, um vírus é a corrupção que já contaminou até a instituição da polícia. Cabe uma “meta-polícia” incorruptível — como ele se enxerga — ser um dos anticorpos que buscam o equilíbrio do organismo social. Uma visão funcionalista bem ingênua que não é ironizada em contradições nos acontecimentos dramáticos. Nem quando o protagonista grita com a esposa e toma remédio psiquiátrico, em casa, Padilha encontra o contraste necessário com a fala deste protagonista. O espectador que vibra com tortura policial tende a ver isso como um discreto efeito colateral daquilo que enxerga como heroísmo. Então, ao reconhecer o resultado desastrado na recepção, a solução foi fazer um novo filme para falar, didaticamente, sobre o assunto. Drama edificante, Tropa de Elite II: O Inimigo Agora É Outro (2010) mostra um Nascimento coronel e reflexivo, buscando se redimir e desfazer parte do discurso que realizou antes.
Duas canções que foram escolhidas para a trilha sonora do primeiro filme ilustram a inclinação do material trabalhado: “Tropa de Elite”, do Tihuana, e “Polícia”, dos Titãs. A primeira foi escolhida como tema, para os créditos iniciais. Uma canção que nem fala de policiais, fala de curtição de fim de semana fazendo analogia com um grupo de operações especiais. Algo bem descolado para acompanhar as frases petulantes de Nascimento, subindo o morro fazendo poses com seu grupo armado. A segunda canção é um famoso punk rock que ironiza a instituição policial e foi inserida na trama de maneira diegética. Ou seja, é ouvida dentro desse universo na cena de uma festa. Quando ela começa a tocar, os personagens percebem e comentam ironicamente. De ferramenta crítica, a canção se torna objeto analisado. Se fosse essa a canção-tema, o sentido do filme poderia demarcar um passo interessante já desde o início. Deste modo, com esse exemplo, está claro que o filme trabalha com certas posições de defensiva e de ofensiva. Uma tese está presente. Além da visão superficial do tráfico de drogas sublinhada pela narração em off do personagem fascistoide, há uma crítica liberal à corrupção. Padilha confirmaria essa superficialidade de análise social ao passar dos anos. Um ápice disso é quando o diretor realiza a série constrangedora O Mecanismo (2018–2019), na Netflix, fazendo apologia da Operação Lava Jato.
A abordagem objetivista de Tropa de Elite gira igualmente em torno de certos núcleos, mas elege o núcleo do Bope como espaço diferenciado. A suposta neutralidade narrativa mostra sua hipocrisia nessa separação antidialética. A priori, não há problema em mostrar as contradições de universitários de classe média e de ONGs, assim como a polícia “comum” é ironizada como um espaço burocrático e corrupto. Esse olhar, no entanto, absolve o espaço da tropa de elite como ponto de resistência sistêmica. Alguém pode até citar as sequências do treinamento exaustivo e extravagante como uma crítica a esse complexo social, mas não é isso que está no foco da ironia. Como demonstra a frase “pede pra sair” — um dos bordões popularizados —, o deboche está no fracasso da resistência de alguns, física e emocional. O imaginário conservador de superação se mantém intacto na trama. E isso não é desfeito nem quando Padilha encerra o filme com uma câmera subjetiva, mostrando o ponto de vista do traficante Claudio Baiano (Fábio Lago) prestes a receber um tiro de calibre 12 no rosto. Uma manobra ínfima para o ciclo determinista que o filme estabelece como uma totalidade fechada. Aliás, o primeiro Tropa de Elite é uma ficção histórica que se passa em 1997, reforçando ainda mais a ideia de um conjunto de circunstâncias naturalizadas. Um tríler de carreira sobre certos espaços moldando os indivíduos sociais como os estereótipos disseminados no senso comum.
Depois do naturalismo do primeiro filme e do romantismo crítico do segundo, seria preferível, se houvesse um terceiro, que alcançasse o realismo. Embora o mais provável é que os realizadores fariam algo parecido com o segundo, buscando a outra face unilateral da experiência equivocada do primeiro filme.
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