quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Delírio de grandeza

2 Coelhos

(dramédia,
BRA, 2012),
de Afonso Poyart.
 


por Paulo Ayres
 
Não se pode negar que os recentes programas de inteligência artificial apresentam resultados impressionantes. No entanto, em meio à nova etapa de revolução industrial, a capacidade desses programas de manipular e gerar arte em variadas combinações é algo que fica entre o assombro e o ridículo. Quando a inteligência artificial cria imagens e vídeos num padrão de composição fotográfica, por mais que seja impressionante sua flexibilidade criativa, tem um quê de artificialidade que compromete o resultado final. Ainda que alguém possa dizer que a tendência é melhorar isso, o que vemos atualmente é uma reconstrução artística “borrachuda”, “plastificada”, isto é, que carrega o estigma da falsidade e da manipulação posterior. Pois bem, lá no ano de 2012, um drama brasileiro apresentou características estéticas parecidas, mesmo sendo feito em filmagem, mesmo sendo constituído de imagens reais em sua quase totalidade. 2 Coelhos é um filme presunçoso, um exercício de roteiro espertinho com narração de um mastermind e um liquidificador de alterações da imagem.
 
A lumpen dramedy de Afonso Poyart parece mais um modelo de preenchimento cujo comando foi digitado para obter as opções mais diretas e eficientes. Por mais que deva ter sido lapidado em vários tratamentos do texto, o resultado na tela parece um esboço ao ser encenado em abordagem dramediesca. É a velha questão da escolha de gênero, aliás, que explica, primeiramente, a cadeia de decisões equivocadas da obra. O segundo ponto é o caráter genérico que essa composição imagética cria: um Brasil que não parece Brasil; uma São Paulo que pode se adaptar para outro lugar e tempo, só fazendo os ajustes necessários. 2 Coelhos até fala um pouco de favela, mas de uma maneira tão artificial que pode trocar esse dado por uma periferia genérica e estrangeira. Com isso, o desejo de fazer uma sequência cool com bordão memorável, como a do Zé Pequeno de Cidade de Deus (2002), fica pelo caminho e, assim, o “quem é Maicon nessa porra?” se perde no frenético vaivém narrativo. Tudo se dilui, as impressões não são fortes o suficiente para serem registradas.
 
Narração em off, tudo é apresentado como um ardiloso plano. Um plano que amadureceu em Miami ou apodreceu? Diferente da humildade rotineira do André de O Homem Que Copiava (2003), Edgar (Fernando Alves Pinto) é um narrador enciclopédico e descolado que busca a simpatia do espectador pela nerdice e pela marra. O fetiche da referência é usado como uma base discursiva de justificação para encher de adornos as imagens vazias: roda, corta, treme, congela, fragmenta, linhas de marcar e desenhar na tela, musiquinha de filme mudo, palavrões e armas... as opções são muitas. Girando em torno do próprio rabo, o drama edificante faz um pequeno videoclipe com “Paciência”, de Lenine, como uma válvula de escape para o ataque de pânico. A ironia é que a paciência estética passa longe nessa proposta narrativa. Como observou o crítico Fábio Andrade na revista Cinética: “O problema, aqui, não é viver um delírio de grandeza, mas sim ter como referencial de grandeza o analfabetismo funcional de um Guy Ritchie”. Se podemos falar de dramatização com estética publicitária, o cineasta inglês é um dos que levam essa tendência a um nível total de devoção. Com 2 Coelhos, Poyart busca ser o grande nome brasileiro nesse estilo lamentável. Só nesse ponto negativo podemos dizer que ele ultrapassa o clássico (no sentido de referência cinematográfica, não de ser um grande filme) Cidade de Deus, aprofundando o seu lado superficial.

Uma coisa é brincar com as imagens, os estereótipos e as referências numa sátira, outra diferente é num drama. Kill Bill: Volume I (2003), por exemplo, funciona super bem ao optar pela encenação folhetinesca, construção propícia para lotar seu enredo de idas e vindas, texturas, linguagens distintas, apresentações, uma animação... Em 2 Coelhos, por ser uma dramédia criminal, a brincadeira audiovisual amplifica a dissolução romântica da seriedade. Há um mundo de quebra-cabeça desabando e só permanece de pé a linha mais egocêntrica e piegas. Debaixo de tanto filtro, aliás, nem parece que a Alessandra Negrini está fazendo um papel interessante de devassa. A maquiagem de Poyart disfarça um par de contradições com uma só camada de efeitos.
 
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