Não é nenhum sacrilégio constatar que Repossessed é um dos melhores filmes sobre o tema do exorcismo e, também, é a sequência não oficial, mas esteticamente legítima, de The Exorcist (1973).
Primeiramente, vejamos o objeto desta paródia: um fantasy thriller considerado um clássico do cinema, dirigido por William Friedkin e roteirizado por William P. Blatty (baseado em seu próprio livro lançado dois anos antes). Apesar da sua potência estética e de ter se tornado um grande fenômeno cinematográfico com sua repercussão, trata-se somente de um bom drama edificante. Esta obra deu origem a uma franquia com outros cinco filmes no mesmo universo ficcional. Três se passando em tempos posteriores — The Exorcist II: The Heretic (1977), The Exorcist III (1990) e The Exorcist: Believer (2023) — e duas prequelas — The Exorcist: The Beginning (2004) e Dominion: Prequel to the Exorcist (2005) —, pois o projeto de mostrar a juventude do Padre Merrin rendeu desentendimentos nos bastidores, gerando duas versões comandadas por diretores diferentes.
Repossessed é uma farsa metalinguística que não é apenas uma paródia, pois se apresenta como uma sequência por causa da presença destacada da atriz Linda Blair, referência imagética por seu papel marcante como a menina Regan. Assim, apesar de os nomes de todos os personagens, obviamente, serem outros na paródia/sequência — Regan MacNeil é Nancy Aglet aqui —, o poder iconográfico nos coloca no mesmo universo do filme de Friedkin. E diferente de The Exorcist II, centrado num futuro atípico para Regan, em Repossessed, Regan/Nancy é reencontrada (pelo nosso olhar que faz a ponte entre os filmes), como uma típica mãe de família da classe média suburbana e estadunidense. Os acontecimentos de 1973 — sim, a sátira faz referência ao ano do drama — são de nosso conhecimento e um segredo guardado pela mulher como um episódio traumático.
Se, no tríler sobrenatural de Friedkin, o ponto de partida é a entrada na puberdade de uma garota, na farsa de Bob Logan, por outro lado, o ponto está na crise psíquica da mãe de família. Numa farsa, especialmente no subgênero de farsa metalinguística, elementos absurdos são presenciados como “naturais” pelas personagens, não há um grande espanto por parte delas. Ou seja, é possível fazer uma metáfora adequada dos estranhamentos contemporâneos, as mediações alienadas que realizam a degradação humana na vida cotidiana. Sentimos que há algo de errado nesta sociabilidade, mas tendemos a encarar este cotidiano alienado como se fosse algo “normal”. Tanto é assim que uma explicação tipicamente superficial e machista é sugerida por alguns no filme: “deve ser TPM”.
Contudo, vendo a família nuclear como o objeto a ser socorrido e afirmado, o foco da ironia é a instituição religiosa. Piadas com este tema não faltam. Além de debochar da burocracia católica, Repossessed entra no mundo dos shows evangélicos. O casal de pastores, aparentemente neopentescostais, funciona como uma caricatura da teologia da prosperidade. Nesse sentido, o “intercâmbio da fé” é a grande ideia criativa que fornece identidade própria para o filme. De maneira passageira, ironiza também outras expressões religiosas, como o esoterismo contemporâneo, na referência à versão feita na cultura pop: a Força de Star Wars [1977–], que mescla deísmo e panteísmo — o padre mais jovem se chama Luke (Anthony Starke).
Criticando o mercado da fé, Repossessed traz no mesmo movimento a mídia burguesa, que é a terceira mediação decadente satirizada. Pior que sensacionalismo televisivo é sensacionalismo televisivo que lucra com a fé alheia. O programa “Exorcism Tonight” representa a grade televisiva com estes programas cristãos sobre “demônios”, “curas” e ofertas. E há Leslie Nielsen, um gigante neste tipo de humor, interpretando um exorcista experiente que discorda do método gospel. Repossessed, então, comenta as variações da religiosidade no capitalismo tardio e se mostra uma boa sátira edificante. E, se não tem o esmero da mise-en-scène de The Exorcist, lhe complementa no mesmo nível — inclusive na insuficiência —, num jogo dialético de luz e sombra, transbordando grotescamente o mesmo material que antes era sutileza narrativa.
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[0] Primeiro tratamento: 10/05/2017.
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