domingo, 2 de junho de 2024

Cela antidialética

Carandiru

(dramédia,
BRA/ARG/ITA, 2003),
de Hector Babenco.
 

 
= = =
por Daniel Schenker
Críticos/2003
 
Voz e sangue

Como, de fato, aconteceu na realidade, o sangue invade Carandiru — o novo filme de Hector Babenco baseado no livro [1999] de Drauzio Varella. Mas o que aparece na tela grande não é o sangue da violência banalizadora das produções comerciais e sim aquele que mexe com a assepsia do público. Sangue contido dentro de um copo acidentalmente ingerido por um prisioneiro que pensava se tratar de água, sangue que pinga na testa de um sobrevivente numa cela repleta de homens chacinados, sangue espalhado pelo chão onde se deita um detento na tentativa de não ser mais um entre os assassinados, sangue no vômito de um doente e na mão de um preso mordida por um rato. “Tem tanto sangue comigo, pastor”, diz, não por acaso, Peixeira (Milhem Cortaz), já delirante, a caminho da evangelização — numa passagem que sublinha a presença de Fernando Bonassi (dramaturgo do espetáculo Apocalipse 1,11 [2000], contundente e frontal exposição do grupo Teatro da Vertigem acerca do deformado estado das coisas, apresentado em presídios — a exceção do Rio de Janeiro, onde entrou em cartaz no antigo prédio do Dops) na feitura do roteiro, ao lado de Victor Navas e do próprio Babenco.

Foram muitas as vozes que colaboraram na confecção de “Carandiru” e o filme revela um desejo em mesclar a particularidade de cada voz com a captação de uma voz comum. Esta orquestração está presente em toda a estrutura do trabalho — nos relatos individuais e complementares (ou um pouco redundantes?) dos presos sobre suas trajetórias, nas músicas entoadas em meio ao cotidiano na prisão, na sequência do Hino Nacional e na luz da lanterna sobre os rostos de presos numa cela sem luz (passagem que traz à lembrança uma belíssima sequência de O Homem Que Virou Suco [1981], de João Batista de Andrade, na qual o farol de uma viatura policial iluminava rostos esquecidos dos habitantes de uma favela às escuras).

Paradoxalmente, porém, uma voz impessoal, destituída do vigor do canto coletivo, parece se sobressair no decorrer da projeção, algo na contramão do trabalho anterior de Hector Babenco — o subestimado Corazón Iluminado [1998]. A impressão de assinatura pouco marcante é realçada por uma evidente costura rudimentar — expressa, por sua vez, no enfileiramento das histórias (algumas delas, de difícil identificação para quem não leu o livro, o que revela uma dependência em relação ao material original) e na forma brusca como os flashbacks são introduzidos (leia-se, utilização de ganchos simplistas demais e tipo de quebra que acabam causando).

A artificialidade também atinge o Drauzio Varella personificado por Luiz Carlos Vasconcelos, ainda que o ator consiga injetar uma oportuna dose de constrangimento, especialmente na passagem protagonizada por Rita Cadillac. A atuação do elenco, louvada com justiça como ponto alto do filme, não chega, porém, a atingir uma autenticidade que permita ao espectador “se esquecer” de que está vendo profissionais representando e assistindo a um filme dentro de uma sala de cinema. Sem procurar exaltar a cartilha do entretenimento e valorizando, com alguma competência, um tom menor, Carandiru busca a verdade (em rápidas passagens, como a que mostra filhos pequenos dos presos cantando num palco improvisado e o pedido de uma mãe para que se zele por seu filho dentro da penitenciária) mas acaba se deixando levar pelos efeitos da encenação (na tentativa de estabelecer uma fusão entre ficção e documentário via depoimentos dos sobreviventes, postos de frente para a câmera).

Ficam para o espectador um domínio técnico apreciável no que diz respeito ao fazer cinematográfico (por exemplo, o corte do show de Rita Cadillac para o barulho da sirene indicando o início do dia de visita) e a capacidade de incomodar sem gratuidade.

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