(farsa,
USA/CAN, 1999–2016),
de Aubrey Ankrum,
Rhode Montijo
e Kenn Navarro.
por Paulo Ayres
Atravessando décadas, a série televisiva The Simpsons (1989–) perdeu o impacto da sua primeira década como animação chamativa. Após seu período dourado, deixou de chamar a atenção até mesmo um elemento ainda mais extravagante que há em vários episódios. Um desenho animado dentro do desenho animado. Ficção dentro da ficção, The Itchy & Scratchy Show, que dura alguns segundos, chama a atenção como farsa com violência gratuita e explícita. Essa paródia bruta de Tom & Jerry funciona bem no contexto fictício em que está inserida de forma breve. Não se pode dizer o mesmo de certas animações farsescas que utilizam essa linguagem fora desse tipo de contexto e como um fim em si mesmo, como Happy Tree Friends, uma série que surge depois da fase dourada de The Simpsons e no alvorecer da popularização da internet.
É preciso admitir que há um contraste intenso, profundo, na ideia que molda Happy Tree Friends. Mas além dessa contradição estética, que chama a atenção num primeiro momento, não há mais nada. Há um vazio de conteúdo que deixa o espetáculo mórbido até no sentido de falta de vivacidade. Ou seja, enxergando mais morte na vida do que o existencialismo alemão, espetacularizar a desgraça fatal assim também soa como uma ontologia social que generaliza a ausência de sentido do sujeito do individualismo metodológico em crise psíquica. Cada pequeno episódio é um ritual funesto de destruição corporal indicando um destino incompreensível e sádico. Lembra um pouco a série cinematográfica Final Destination (2000–), em que a morte é uma entidade sobrenatural com uma lista e com regras ocultas, trazendo desgraças mirabolantes quando se aproxima do indivíduo social que é seu alvo da vez. Entretanto naquelas satirizações folhetinescas não há um determinismo caótico e derrotista, há um espaço humanista de resistência em que a protagonista da vez é capaz de superar a fatalidade e adiar o dia da sua morte. Em Happy Tree Friends, as personagens sem falas entendíveis, além de não ter voz ativa, tem existência passiva de cobaias. São animais antropomórficos e multicoloridos feitos como se fosse um desenho infantil para crianças pequenas, como Peppa Pig (2004–), por exemplo. No entanto, aqui, o destino cruel esfola, empala e estraçalha bichinhos fofinhos.
Tudo começou com um brevíssimo curta feito em Adobe Flash chamado “Banjo Frenzy” em 1999. Ideia aprovada pela Mondo Media e surge uma websérie, substituindo o dinossauro azul pelo alce Lumpy. Como série televisiva o programa começa em 2006. Cada episódio tem uma existência com autonomia, como é comum ocorrer em ficções farsescas, nas quais a continuidade é suspensa e figuras não só mudam de ocupações, circunstâncias etc. como também, às vezes, retornam soltas ou vivas mesmo se tiverem sido presas ou mortas no episódio anterior — assim como um coiote antropomórfico cai de um penhasco e aparece normalmente na próxima sequência num mesmo curta do Looney Tunes. O método humorístico do slapstick encontrou nas possibilidades da animação um panorama vasto de flexibilidade extrema, ressaltando a capacidade de regeneração instantânea. Em Happy Tree Friends, diferentemente, como o foco é o processo
doloroso de ferimento e falecimento, se cai uma bigorna na cabeça de
alguém é para abrir o crânio, uma explosão de dinamite não deixa alguém
apenas brevemente queimado, tende a espalhar sangue e vísceras. Até há
curativos que aparecem de forma instantânea nesse mundo — como os braços amputados e enfaixados do castor Handy —, porém o que prevalece é a lei do azar
absoluto que empurra para a dor e o aniquilamento. A ruptura episódica se intensifica como um padrão de mortandade e se apresenta como uma finalidade do enredo. E isso é algo destoante na tradição formada na farsa física, que procura ver nos choques materiais um recurso passageiro.
É verdade que além do slapstick existe o splatstick, um método humorístico em que o foco não está na regeneração e sim no horror corporal, na destruição criativa de fato, como no filme de zumbis Braindead (1992). Todavia, essa variação splatter só faz sentido como pano de fundo da trama a ser desenvolvida e contornada, pois um recurso se exaure quando está fechado em si mesmo. Happy Tree Friends tem mais de cem episódios, mas quem viu meia dúzia viu todos. Não há criatividade na tentativa de variar as maneiras de morrer em acidentes graves e, às vezes, homicídios. Os potenciais comentários sobre a vida cotidiana não se desenvolvem porque há um rumo esperado que uniformiza os corpos como mero material manipulado por uma força maior. O aspecto gore perde a graça quando se torna pura manipulação absoluta. Pior: perde o impacto da vulnerabilidade humana que geralmente há mesmo numa farsa bem absurda. E em certos episódios em que essa sátira niilista tentou variar, deixando o personagem central vivo, o foco assumiu uma postura de gosto estético torturante ao ver algum acidente que busca o humor na agonia de presenciar parte do corpo sucumbindo — como quando o alce Lumpy tem uma perna presa por uma árvore derrubada.
Uma série de animação farsesca como Teen Titans Go! (2013–) consegue ironizar as lições de moral que apresenta no fim de vários episódios. Happy Tree Friends, por causa da sua fórmula repetitiva e estreita, transmite uma crueldade cínica ao colocar uma lição para cada desfecho. Deste modo, o personagem mais destacado é um urso verde chamado Flippy. Veterano do exército com um tipo grave de estresse pós-traumático, ele se transforma às vezes num soldado insano que mata quem está por perto. Algo em sintonia com a insanidade artística dos realizadores, enxergando a contagem de cadáveres como um exercício inovador de desenho sanguinolento, quando na verdade estão matando, de novo e de novo, um projeto que já morreu no episódio piloto.
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