sexta-feira, 31 de maio de 2024

Sentido literal


Blindness
 
(tríler,
BRA/CAN/JAP, 2008),
de Fernando Meirelles.


 
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por Carlos Alberto Mattos

Uma luz forte, mas breve

O romance [1995] de José Saramago exerce seu fascínio em parte por causa da trama, em parte pela singular dicção do escritor, especialmente para quem o lê em português. Seria despropositado esperar que uma adaptação cinematográfica, ainda mais uma produção eminentemente internacional como Blindness, conseguisse reproduzir esse segundo elemento. Não se trata aqui de comparar livro e filme, erro tão recorrente na prática da crítica. Mas é preciso examinar o que resta ao projeto de um filme que tem em comum com o livro original apenas a sua trama.

Fernando Meirelles procura suprir essa inevitável lacuna com um estilo visual agressivo, baseado na ideia do “mal branco”, nome atribuído à epidemia de cegueira que devasta um país inteiro a partir de um único motorista subitamente acometido (na verdade, não se pode afirmar que o “primeiro cego” do livro é de fato a origem da epidemia). Assim, a supressão da cor como um todo e a invasão do branco formam a “dicção” do filme. Some-se a isso um arsenal de procedimentos óticos relativos a foco, reflexos duplicadores e formas que replicam a órbita ocular. E ainda uma montagem nervosa, que procura exprimir a tensão em torno dos acontecimentos.

Estamos no terreno um tanto comum da representação da deficiência visual. Ao colocar tamanha importância nesses artifícios, o filme dá um peso muito grande à denotação da doença, deixando em segundo plano as conotações que fazem de Ensaio sobre a Cegueira, o livro, mais que uma ficção científica, um ensaio filosófico.

O roteiro de Don McKellar (intérprete do ladrão de carros) cria um ambiente multiétnico bastante propício tanto ao caráter multinacional da produção quanto à universalidade da parábola de Saramago. Há personagens de três raças, atores de distintas latitudes e locações distribuídas entre três países (Brasil, Canadá e Uruguai). No entanto, todo esse aparato está a serviço quase que unicamente de cumprir a sucessão de fatos da trama. Pelo menos, daqueles considerados fundamentais. Muitas vezes, porém, o essencial do livro está nos seus desvios — como o encontro do grupo com a velha vizinha da mulher de óculos escuros, personagem simbólico da solidão e da solidariedade capaz de florescer em meio ao terror mais absoluto.

Apesar das frequentes declarações de aprovação do escritor, são poucos os momentos em que suas ideias — a linha tênue entre ordem e caos, a solidão de quem vê melhor que a média dos homens, e sobretudo a cegueira moral que independe da visão — encontram eco na sucessão quase sempre frenética e repentina de episódios. A riqueza da personagem da mulher do médico (Julianne Moore), a única a manter a visão, sofre com uma abordagem mais funcional que metafórica. A imagem de Santa Luzia, única sem olhos vendados no cenário da igreja, foi eliminada do filme, e vejo isso como uma senha da recusa a uma simbologia mais acentuada.

Blindness é certamente um filme corajoso e bem-sucedido como produção e concepção estilística, mas passa a impressão de ser literal demais. As atuações do elenco, corretas mas indistintas, somam para a sensação de um sonho esmaecido, que em vez de memória traumática, deixa apenas um rastro branco, uma luz forte mas breve.

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