terça-feira, 8 de julho de 2025

Conexão realista

 A Nuvem Rosa

(tríler,
BRA, 2021)
de Iuli Gerbase.
 
 
 
por Paulo Ayres
 
Aquela conhecida frase dizendo que a possível semelhança entre tal obra de ficção e determinados fatos históricos é mera coincidência está no início de A Nuvem Rosa. A autora esclarece que o filme foi escrito em 2017 e filmado em 2019. A referência ao fato histórico da pandemia do novo coronavírus, confirmada mundialmente no início de 2020, explicitou a relevância dessa ficção científica. Contudo, mesmo se não houvesse a enorme sintonia quase simultânea, a sensibilidade artística de Iuli Gerbase seria uma amostra de espelhamento realista da essência de um determinado período histórico. Afinal, o que é a nuvem rosa do enredo? As informações são muito vagas e isso não importa para o tríler ser o grande filme que é. Há apenas um conjunto de sinalizações de que se trata de um fenômeno natural desconhecido, sem nenhuma previsão de término, mudando radicalmente a dinâmica da reprodução social em vários cantos do planeta. Há até uma indagação irônica de por que o gás tóxico não entra pelas frestas dos abrigos residenciais. De fato, não importa.
 
O que importa, então, nesse enredo sobre a neblina “venenosa”? Como eco-thriller, não seria importante apontar que se trata de uma espécie de poluição mortal causada pela ação humana? Talvez em outra proposta bem montada, pois, em A Nuvem Rosa, a observação do comportamento humano na vida cotidiana está na lupa da diretora. A própria questão da vida pandêmica em estilo de quarentena rigorosa serve como uma mediação estética para notarmos traços marcantes da sociedade moderna em seu estado “normal”. A dimensão extraordinária realçando aspectos da dimensão ordinária.
 
Vemos uma trajetória que vai de um sexo casual até a formação de uma família nuclear com um filho pequeno. O casal protagonista, Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça), está numa “nova normalidade” com instrumentos levemente futurológicos no auxílio de sobrevivência. A distribuição de produtos ocorre por drones e um tipo de tubo de eliminação do gás nocivo. Também não há maiores referências de como a economia está funcionando. A vida online é ampliada pelo drama e é aí que a gente se enxerga um pouco naquelas telas de celular, notebook e televisão. Aplicativos, serviços virtuais, simulação tridimensional, várias conversas, webnamoro etc. As janelas também são relevantes. Não só pelo filtro rosado do filme, mas como aquela situação-limite  nos faz pensar que cada núcleo familiar é uma célula voltada para si na sociedade de classes. Durante os anos, através da janela, Giovana vê o desespero de um suicida e, também, interage com um vizinho através de brincadeira e masturbação. A Nuvem Rosa, no meio do seu registro de tendência modernas, também reflete que monogamia e monotonia estão mais conectadas do que a aparência das palavras.
 
Como complemento parental dos protagonistas e modelos de outras faixas etárias, o drama mostra, através de telas de aparelhos eletrônicos, a filha adolescente de Giovana e o velho pai de Yago. A primeira se rebelando na casa de uma amiga e o segundo resmungando na convivência de um cuidador. Enquanto isso, o otimismo de Yago se acentua como conformismo e ganha até um discreto contorno religioso. A criança, por sua vez, adora a nuvem rosa, pois nasceu numa forma de sociabilidade moldada por ela. É com Giovana que Gerbase encontra um caminho de encerrar A Nuvem Rosa com um final aberto e de crescimento contraditório. Um gesto ousado de experimentação expandindo o horizonte do lado de fora. Ela respira dez segundos o gás rosado e o filme acaba. Não se sabe se morreu ou não. Talvez o efeito nocivo tenha passado, talvez não. Atitude que pode soar como coragem ou desespero — ou um misto dos dois —, mas sem a aura moralista de sacrifício redentor. 

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