domingo, 19 de janeiro de 2025

Mentalidade colonial

World War Z 

(tríler,
USA, 2013),
de Marc Forster.



por Paulo Ayres

O gênero temático do apocalipse zumbi é material bem delicado: dependendo da dose, temos remédio ou veneno. A ironia na história dessa ficção é que seu surgimento está na série de filmes de George Romero, servindo como alegoria humanista que critica o status quo, mas sua proliferação em diversas expressões (literatura, filmes, séries televisivas, videogames etc. — inclusive a própria série cinematográfica se ramificando em série alternativa, remakes, paródias, sequências não-oficiais) costuma render muito escape fascistoide para extravasar sentimentos elitistas de barbárie. É óbvio que isso geralmente não é feito de maneira proposital pelos realizadores de tais entretenimentos, mas, independente de suas intenções — na maioria das vezes, meramente escapistas —, é preciso analisar o resultado do produto artístico. Nesse sentido, presenciamos um ápice da fascistização nesse gênero temático no blockbuster roliudiano World War Z, que apareceu quarenta e cinco anos depois de Night of the Living Dead (1968), um folhetim de baixo orçamento.

A ambição de World War Z não está apenas no título pomposo, mas em cada fotograma de um projeto multimilionário de gourmetização dramática. O filme segue a linha de Dawn of the Dead (2004), de Zack Snyder: o apocalipse zumbi com criaturas ágeis. Além disso, o tríler de Marc Forster possui um panorama geopolítico, ainda que na posição de “observador” com certa distância. O enredo estimula a barbárie generalizada ao mesmo tempo que eleva uma instância moral e universal que coordena a sobrevivência. É a cara do liberalismo neocolonial.

Na epiderme, é claro, não há nada de mais. Uma produção tumultuada se serviu do best-seller de Max Brooks e regurgitou um “filme de ação” no padrão “e se tal coisa fantasiosa realmente acontecesse?”, “vamos representar de maneira bem verossímil”. Essa ideia especulativa, aliás, é algo comum na ficção científica e responsável por fazer o gênero patinar no irrealismo, mesmo em certas obras memoráveis (a chamada hard sci-fi, então, é um terreno infértil no mais das vezes). World War Z tem esse traço cientificista e, aparentemente, busca se desvencilhar de bandeiras particulares. Sem o chauvinismo de alguns filmes de catástrofe (Independence Day, 1996, sendo o mais exemplar), a trama tem um quê do cinema onguista e transnacional na figura do agente das Nações Unidas, Gerry Lane (Brad Pitt, também coprodutor). Por livre e espontânea pressão, esse family guy viaja o mundo, barbarizado pelo surto, para investigar o vírus misterioso e confirmar o filme como um drama edificante.

Ver esse eco-thriller após a pandemia do novo coronavírus é ainda mais perturbador. O seu aspecto deplorável ganha nitidez, pois há também uma “pandemia” de movimentos de extrema direita se expressando de forma cada vez mais enfática. O darwinismo social presente no filme ecoa na nossa realidade de crise sanitária em que há determinados discursos de eugenia camuflada. Um tipo de discurso que está em World War Z desde as entrelinhas (os créditos iniciais mostram a alimentação carnívora no reino animal), em certas falas (o jovem virologista fala da esfera do ser natural como se nesse nível de ser existisse crueldade) até aquilo que diz mais que mil palavras: massacres, pilhas de gente, apartheid visual — e o muro sionista de Jerusalém ainda é elevado a exemplo mundial de contenção de pandemia (?!)... só falhando quando os benevolentes israelenses trazem muitos palestinos, cujos cânticos atraem os zumbis. E, para variar, é citada a Coreia do Norte, que teria resolvido o problema arrancando os dentes de todos os cidadãos; algo dito por um agente da CIA e no mesmo nível das fake news comuns na imprensa ocidental quando especula sobre o país socialista. A menção poderia ser irônica, mas não é.

Na naturalidade paisagística de Forster, os incansáveis zumbis formam uma enorme massa acéfala e contagiante que, querendo ou não, ilustra a ideia aristocrática do “despotismo das massas”. E mesmo que alguém fale para deixar as leituras metafóricas e ver o que a trama diz diretamente, não tem como escapar: são figuras humanas ali. Se a ficção científica levanta o tema, pertinente, de até que ponto o desenvolvimento da inteligência artificial pode acabar gerando um ser social, na outra ponta, a lupa dramática faz perguntar sobre quando uma pessoa bestializada deixa de ser humana de fato. Em um drama, dizer que eles já “estão mortos” não cola como justificativa para a aniquilação. Do mesmo modo, o selo da ONU e da OMS não garante um amparo concreto para a universalidade humana, tanto em World War Z quanto na realidade do sistema mundial do capital. E, com efeito, o humanismo abstrato convive organicamente com expressões fascistas.

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[0] Primeiro tratamento: 30/06/2020.
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