quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Blitz familista

The Mule

(dramédia,
USA, 2018),
de Clint Eastwood.
 


por Paulo Ayres

1. Road movie. Estamos falando de um filme intercalado por planos abertos de uma camionete cruzando rodovias norte-americanas, canções e letreiros nos dizendo qual é o número da viagem em questão. A estrada como ponto de transformação. Em The Mule, o narcotráfico é secundário, ou melhor, é uma via para o processo de desenvolvimento afetivo de Earl Stone (Clint Eastwood), o horticultor nonagenário que se torna um discreto traficante de drogas. Essa dramédia criminal, no entanto, faz um movimento de bumerangue: vai longe no cinismo calibrado, mas retorna como aconchego conservador.

2. Nuclear family. The Mule é um drama edificante sobre a família. É verdade que Million Dollar Baby (2004) também é — e lá o boxe é que é apenas uma via —, porém, a família white trash faz parte dos elementos estranhados na vida da protagonista, e, como ponto de resistência, um outro núcleo de afetividade emerge em terreno extrafamiliar. A família em The Mule, por sua vez, é aquela de comercial de margarina. Com suas tensões profundas, é verdade, mas sempre mantida num certo altar de segurança acima do mundo cão — mundo esse que absorve Earl após ser “despatriado” do seu lar. Mais do que os sinais da idade avançada, o corpo idoso de Eastwood está ali como registro do murchamento individualista. Earl, apesar de aparentemente ser um saudosista gente boa, é um grande pecador para a ideologia do filme. Não importa o seu passado patriota de agente imperialista que participou da Guerra da Coreia (militar veterano tal como o Walt Kowalski de Gran Torino, 2008). Seu sacrilégio é ter sido negligente com a célula da sociedade antagônica.

3. Beaners. Por falar em Gran Torino, o velho de The Mule também desenvolve gradualmente um vínculo afetivo com alguém de outra etnia/nacionalidade. Os mexicanos — e descendentes de mexicanos — formam o contraste. A sequência num restaurante aberto sintetiza mais que o desejo de fazer menção ao preconceito de estadunidenses brancos que encaravam os dois latinos no local. É quando Earl os chamam de beaners num comentário sarcástico. O subtexto involuntário é que os “feijões” sempre serão visto como um prato exótico para a trama, de fato: alimento para figurantes, alívios cômicos e vilões.

4. Buddy film. Curiosamente, uma das melhores cenas é totalmente descartável para o enredo e indica um interessante material não desdobrado. A polícia, no encalço da “mula” (transportador de drogas ilegais), aborda um condutor chicano, que, apavorado, considera aqueles cinco minutos como os mais perigosos da sua vida. É um momento que Eastwood faz questão de apontar o dedo para a dimensão racista da sociedade burguesa refletida na repressão policial. Assinamos embaixo dessa ironia bem direcionada. Entretanto, ao tomar um rumo moralista, a dramédia faz (involuntariamente, que seja) o seu próprio racial profiling. Isso se afirma na figura do policial branco (Bradley Cooper) que aprenderá com Earl a não negligenciar a sua família. Um inusitado buddy film se forma. Não com a dupla policial e nem com a dupla delinquente, mas entre o jovem policial e o velho criminoso numa parceria nebulosa: a cumplicidade e o conflito só se esclarecem no fim.

5. Reconciliation. O que a picape em The Mule tem de sobra é culpa e seu destino final é a redenção. A abordagem romântica, contudo, está no limite avançado do que pode oferecer. A sensibilidade estética de Eastwood lhe permite refletir o cinza em alguns tons, de modo que os delitos e deleites de Earl no narcotráfico se apresentam de modo carismático. O tom de remorso só emerge pelo reconhecimento de seu afastamento familiar, dos seus compromissos maritais e paternos. O roteiro de Nick Schenk, então, força uma reparação pré-óbito usando o clichê da doença terminal. Deste modo, assim como os lírios-de-um-dia (hemerocallis) que Earl cultiva — flores que desabrocham pela manhã e murcham à noite —, o velho é “plantado” numa penitenciária-purgatório, representando, assim, a conciliação familista.

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