(dramédia,
USA, 2018),
de Clint Eastwood.
por Paulo Ayres
1. Road movie. Estamos falando de um filme intercalado por planos abertos de uma camionete cruzando rodovias norte-americanas, canções e letreiros nos dizendo qual é o número da viagem em questão. A estrada como ponto de transformação. Em The Mule, o narcotráfico é secundário, ou melhor, é uma via para o processo de desenvolvimento afetivo de Earl Stone (Clint Eastwood), o horticultor nonagenário que se torna um discreto traficante de drogas. Essa dramédia criminal, no entanto, faz um movimento de bumerangue: vai longe no cinismo calibrado, mas retorna como aconchego conservador.
2. Nuclear family. The Mule é um drama edificante sobre a família. É verdade que Million Dollar Baby (2004) também é — e lá o boxe é que é apenas uma via —, porém, a família white trash faz parte dos elementos estranhados na vida da protagonista, e, como ponto de resistência, um outro núcleo de afetividade emerge em terreno extrafamiliar. A família em The Mule, por sua vez, é aquela de comercial de margarina. Com suas tensões profundas, é verdade, mas sempre mantida num certo altar de segurança acima do mundo cão — mundo esse que absorve Earl após ser “despatriado” do seu lar. Mais do que os sinais da idade avançada, o corpo idoso de Eastwood está ali como registro do murchamento individualista. Earl, apesar de aparentemente ser um saudosista gente boa, é um grande pecador para a ideologia do filme. Não importa o seu passado patriota de agente imperialista que participou da Guerra da Coreia (militar veterano tal como o Walt Kowalski de Gran Torino, 2008). Seu sacrilégio é ter sido negligente com a célula da sociedade antagônica.
3. Beaners. Por falar em Gran Torino, o velho de The Mule também desenvolve gradualmente um vínculo afetivo com alguém de outra etnia/nacionalidade. Os mexicanos — e descendentes de mexicanos — formam o contraste. A sequência num restaurante aberto sintetiza mais que o desejo de fazer menção ao preconceito de estadunidenses brancos que encaravam os dois latinos no local. É quando Earl os chamam de beaners num comentário sarcástico. O subtexto involuntário é que os “feijões” sempre serão visto como um prato exótico para a trama, de fato: alimento para figurantes, alívios cômicos e vilões.
4. Buddy film. Curiosamente, uma das melhores cenas é totalmente descartável para o enredo e indica um interessante material não desdobrado. A polícia, no encalço da “mula” (transportador de drogas ilegais), aborda um condutor chicano, que, apavorado, considera aqueles cinco minutos como os mais perigosos da sua vida. É um momento que Eastwood faz questão de apontar o dedo para a dimensão racista da sociedade burguesa refletida na repressão policial. Assinamos embaixo dessa ironia bem direcionada. Entretanto, ao tomar um rumo moralista, a dramédia faz (involuntariamente, que seja) o seu próprio racial profiling. Isso se afirma na figura do policial branco (Bradley Cooper) que aprenderá com Earl a não negligenciar a sua família. Um inusitado buddy film se forma. Não com a dupla policial e nem com a dupla delinquente, mas entre o jovem policial e o velho criminoso numa parceria nebulosa: a cumplicidade e o conflito só se esclarecem no fim.
5. Reconciliation. O que a picape em The Mule tem de sobra é culpa e seu destino final é a redenção. A abordagem romântica, contudo, está no limite avançado do que pode oferecer. A sensibilidade estética de Eastwood lhe permite refletir o cinza em alguns tons, de modo que os delitos e deleites de Earl no narcotráfico se apresentam de modo carismático. O tom de remorso só emerge pelo reconhecimento de seu afastamento familiar, dos seus compromissos maritais e paternos. O roteiro de Nick Schenk, então, força uma reparação pré-óbito usando o clichê da doença terminal. Deste modo, assim como os lírios-de-um-dia (hemerocallis) que Earl cultiva — flores que desabrocham pela manhã e murcham à noite —, o velho é “plantado” numa penitenciária-purgatório, representando, assim, a conciliação familista.
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Lista de historical dramedy no subgênero crime fiction:
- Máfia realista
- Imitação da vida
- Digressão realista
- Espetáculo realista
- Paciência realista
- Coito coisificado
- Astúcia da razão
- Posição aparente
- Cela antidialética
- Assunto pendente
- Vigilância comunitária
- Cidade naturalista
- Tempero naturalista
- Juízo posterior
- Delírio de grandeza
- Filtro amarelo
- Arquitetura realista
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