quarta-feira, 15 de maio de 2024

Visita virtual

Doctor Sleep

(tríler,
USA, 2019),
de Mike Flanagan.
 


por Paulo Ayres

A história é bem conhecida: Stephen King não gostou da versão realista (1980) que Stanley Kubrick fez ao adaptar para o cinema o livro edificante The Shining (1977). Além de outras diferenças, o final da obra de King tem um tom moralista, incluindo um sacrifício redentor para Jack Torrance. Vida que segue. O escritor roteirizou e produziu uma minissérie ao seu gosto em 1997 e, anos depois, publicou uma continuação do romance, Doctor Sleep (2013). Obviamente que a Warner se interessaria numa adaptação deste livro também, mas a questão que surge no projeto é que há dois universos criativos em conflito aí.

De duas principais decisões do projeto de Mike Flanagan, a primeira é acertada. Trata-se de usar o novo material literário de King, mas redirecionando esse material para o repertório audiovisual deixado por Kubrick. Sim, é o universo kubrickiano que tem prioridade artística e é expandido. Para o marketing desse novo fantasy thriller, então, foi essencial anunciar que é uma continuação do grande filme de 1980. O prestígio, a curiosidade, o reencontro com imagens e sons marcantes que deixaram referências na cultura pop. Entretanto, o desenvolvimento do enredo de Doctor Sleep revela que esse legado de peso funciona mais como adereços, que despertam certo fascínio, mas de forma distanciada e quase paralela ao foco narrativo. Ademais, outro ponto curioso é que se revela um bom tríler justamente na medida em que não depende das referências ao passado de Dan Torrance (Ewan McGregor), quando era um garotinho andando de triciclo pelos corredores do Overlook Hotel. A decisão equivocada de Flanagan é, portanto, quando satura seu filme com os elementos herdados. A parte final é a tão aguardada volta ao hotel assombrado de Kubrick, mas há algo estranho nessa visita. Por mais que a cenografia e a fotografia tenham caprichado na reconstituição do lugar, há uma sensação de distanciamento virtual, com um leve tom paródico, intensificado pelo fato de que, para a trama, é como um desvio iconográfico. Os hóspedes fantasmas aparecem juntos e, nessa espécie de museu itinerante e em despedida, o final redentor de King é escolhido.

O acúmulo de elementos fantasiosos é uma marca do escritor que Flanagan absorve na adaptação e é responsável por trocar o subgênero temático. Da ficção sobrenatural — sobre entidades do além — para uma ficção mágica que acompanha um grupo errante chamado True Knot, capturando almas de forma vampiresca. A líder Rose (Rebecca Ferguson) até tem uma presença macabra, mas é a típica vilanização que ocorre em drama edificante. Algo diferente da gradual loucura do Jack Torrance feito por Jack Nicholson. A presença infantil com o “brilho” sobrenatural é a menina  Abra Stone (Kyliegh Curran), que faz uma amizade telepática com o adulto Danny, o Doctor Sleep que conforta moribundos em New Hampshire.

Um ano antes de Flanagan, Spielberg visitou o Overlook Hotel no folhetim Ready Player One (2018). Doctor Sleep não é uma ficção científica, mas transparece algo de realidade virtual na reconstrução estética do imponente hotel.

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Lista de fantasy thriller no subgênero magical fiction:
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