sábado, 2 de setembro de 2023

Labirinto realista

 The Shining 
 
(tríler,
USA/UK, 1980),
de Stanley Kubrick.
 

 
= = =
por Claude Monnier
DVDClassik/2019
 
O espectador que assiste a The Shining pela primeira vez está condenado a vê-lo novamente; os que amam o filme continuarão voltando aos corredores do Overlook Hotel e se perguntando o que viram, às vezes construindo teorias nebulosas (ver o documentário Room 237 [2012]); quem não gosta tem duas opções possíveis, ou recusa categoricamente a mergulhar de novo ou tenta de novo, mas, em ambos os casos, pensará obcecado, sem dúvida, nesta questão: porque é que os outros o veem como um ótimo filme e não eu?

Você já conhece a origem do projeto: após o fracasso nas bilheterias americanas de seu caro e magnífico Barry Lyndon (1975), Stanley Kubrick queria fazer um filme mais “comercial” e, assim, competir com a recente geração da Nova Hollywood, que então triunfou nas telas. O sucesso sem precedentes de The Exorcist [1973], de William Friedkin, e Jaws [1975], de Steven Spielberg, não o deixa indiferente. Estamos na era pós-Vietnã e pós-Watergate, ou seja, a era da má consciência americana. Kubrick entende que o horror agora é o Zeitgeist, o espírito da época. The Shining será, portanto, um horror segundo Stanley Kubrick, como dizia a publicidade quando o filme foi lançado em 1980. Você já sabe como aconteceu: como Kubrick escolheu o romance de um autor pouco conhecido na época, Stephen King; como, para desgosto deste último, ele lhe foi infiel, transformando sua narrativa com a ajuda de Diane Johnson, uma especialista em literatura fantástica, alterando a personalidade de Wendy (segundo Kubrick, uma mulher bela e forte como no romance jamais teria se casado com um fracassado como Jack Torrance), retirando flashbacks explicativos do alcoolismo de Jack, descartando a ideia do jardim com arbustos em forma de animais (que acabam ganhando vida e se tornam hostil em King), bem como a explosão final do hotel demoníaco. Da mesma forma, você já sabe que Kubrick se trancou por meses num estúdio em Londres, tendo recriado o interior de um gigantesco hotel no Colorado com grande custo, repetindo sistematicamente cada take mais de quarenta vezes, mesmo que fosse para Jack Nicholson abrir uma simples porta... A mania de Kubrick então parecia corresponder à de seu personagem principal, que digita em sua máquina de escrever o mesmo texto infinitamente, em pequenas variações de layout! E, para quem conhece a lenda de Kubrick, o caseiro, incapaz, na segunda metade da vida, de viajar, é óbvio que a história desse homem que se fecha (e tranca a família) para “criar” é um autorretrato divertido e angustiado. Um verdadeiro exorcismo.

Sim, você já sabe de tudo isso, tanto que a lendária personalidade de Kubrick engoliu esse filme de gênero. Na verdade, pela onipresença e onipotência do cineasta demiurgo, por seu humor também, The Shining não é tanto uma história de apreender de primeira quanto um comentário, beirando a caricatura, sobre o filme de terror. Não vamos esquecer o espírito satírico do autor de Dr. Strangelove [1964] e A Clockwork Orange [1971]. Se Nicholson está agindo de forma ultrajante e literalmente se considerando o lobo mau em face dos três porquinhos, se certas imagens (por exemplo, os esqueletos no final da versão americana[1] ou simplesmente a torrente de sangue no corredor) o fazem “trop” é que o cineasta não é realmente um amante do fantástico. Além disso, ele é um homem racional que observa todos os chamados fenômenos “sobrenaturais” à distância. Assim, uma das razões por que se comprometeu na realização de 2001 [1968] foi dar uma explicação racional de Deus: para ele, “Deus” é simplesmente cientistas extraterrestres que, desde o início dos tempos, procuram entrar em contacto com nós, mas esses seres são tão evoluídos que seu modo de comunicação (o monólito) nos ultrapassa e parece “divino” para nós. Sobre The Shining, o desiludido Kubrick, discípulo lúcido de Freud, Schnitzler e Max Ophüls, declarou significativamente a Michel Ciment[2]: “A atração essencial que as histórias de fantasmas têm é que implicam uma promessa de imortalidade: no nível inconsciente, eles agradam porque, se podemos ter medo de fantasmas, é porque aceitamos, mesmo que por um momento, a ideia de que existem seres sobrenaturais, e isso obviamente supõe que, além do túmulo, existe outra coisa além do esquecimento”. Kubrick é, portanto, antes de tudo um pragmático que aspira, depois de ter lido todos os estudos sobre o sobrenatural, fazer o filme-síntese do terror.

Mas se esse filme é muito “autoconsciente”, por que diabos ele nos marca tanto? A primeira razão é que com The Shining você tem o que eu chamaria de obsessão por assinatura. A obsessão pela assinatura é uma velha doença epidêmica que remonta ao século XIX, tendo suas raízes no mito do gênio romântico, proliferando então com o nascimento da arte moderna a partir dos impressionistas. Os especialistas do “mercado de arte” nos dizem: se uma obra é assinada por Cézanne, Picasso, Pollock ou Warhol, é inevitavelmente genial. E cuidado com quem não vê esse gênio, eles vão se passar por caipiras e vão ter que torturar seus cérebros! Na verdade, Kubrick “traumatiza” o cinéfilo com sua presença nos créditos [iniciais] de The Shining. Ele nos possui como o hotel possui Jack Torrance.

Por isso temos que tentar escapar dessa influência e nos perguntar honestamente, dando um passo atrás na direção, se o filme nos marcaria tanto se não fosse o nome de Kubrick nos créditos. E aqui, é claro que, assinatura de prestígio ou não, a segunda razão pela qual The Shining nos atormenta é que ele foi projetado visualmente para impressionar nossa retina e, portanto, possuir nossa mente. Uma vez vista, é impossível esquecer os planos aéreos da introdução, correndo sobre lagos puros e montanhas geladas, impossível esquecer as tomadas frontais em steadicam no triciclo de Danny percorrendo os corredores do Overlook Hotel, nem o movimento impedido para frente/atrás que envolve Wendy na escada, paralisada diante de seu marido furioso. E como podemos apagar de nossa memória os sinuosos travellings que seguem por sua vez o “Minotauro” e sua presa no labirinto congelado? Imersão irreprimível, paradoxal: os personagens (e os espectadores) são sugados para um corredor imenso e bloqueado. Em direção ao vazio da sepultura.

Pela força, precisão e pureza de seu estilo, Kubrick é comparável aos grandes compositores do século XIX. O movimento rítmico de The Shining evoca o de uma sinfonia wagneriana: surtos repetidos, intercalados com explosões; aqui, grandes tiros para a frente que acumulam energia cinética, interrompidos violentamente por um tiro fixo (quebra sublinhada pela percussão atonal). Veja, por exemplo, a tomada mais traumática do filme: o súbito aparecimento das irmãs gêmeas na curva de um corredor. É a fixidez mecânica dessas duas meninas que as torna assustadoras, assim como a bizarra duplicação que operam na linha de fuga. Nossos olhos estão alucinando. É quase uma gag “bergsoniana” (da mecânica revestida na vivência), mas, como qualquer gag, constitui uma anomalia monstruosa da normalidade, uma anomalia que tanto pode fazer rir como inquietar.

O conceito do filme é mostrar que o horror não vem necessariamente de um castelo gótico ou de uma fossa caipira [redneck], mas de um tapete limpo e kitsch (David Lynch lembrará), de uma iluminação elétrica plana num banheiro (legado de Psycho [1960]), do aço inoxidável impecavelmente polido de um refeitório ou de uma simples resma de papel. O que realmente nos assusta em The Shining é o vazio e a feiura funcional da vida moderna, um vazio que acusa nossa esterilidade existencial e nos deixa ainda mais sós diante de nossos demônios interiores.

O labirinto sintetiza visual e simbolicamente a essência do filme: ao entrar nele, você só pode girar em círculos num vazio perturbador, numa espécie de abismo “horizontal”. Estamos de fato entrando em um loop onde a lógica usual do tempo e do espaço, como a entendemos em nossa sociedade (indo do ponto A ao ponto B, de tal hora a tal hora, como Jack no início do filme), desaparece gradualmente e depois desaparece completamente: Jack sempre morou lá, sempre foi o guardião do Overlook. O filme é de fato um loop de espaço-tempo onde o doméstico (aqui a menor unidade da civilização, o pai, a mãe, a criança) se dissolve completamente no cósmico (a natureza grandiosa, a neve incessante que cobre tudo). E no fundo do labirinto, Jack está diante de nós, no espelho: nosso duplo está no espelho e nos observando.

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Notas:
[0] Tradução de Paulo Ayres.
[1] Em sua notável obra Stanley Kubrick, o humano, nem mais nem menos, Cahiers du cinéma, 2005, Michel Chion identifica cuidadosamente as diferenças entre a versão longa americana (144 min) e a versão curta europeia (120 min): Kubrick queria a versão europeia mais contundente e “cortada”, removendo muitos crossfades, bem como algumas cenas de ligação mundanas”, como um pediatra visitando o apartamento de Torrance no início do filme, uma conversa com o gerente assistente quando Jack foi contratado, uma conversa pacífica entre Wendy e o marido em seu apartamento oficial, ou mesmo os esforços laboriosos de Hallorann para chegar ao hotel no final; a remoção da imagem chocante dos esqueletos com teias de aranha pode ser porque Kubrick a achou desajeitada. Quanto ao famoso epílogo em que o gerente do hotel, interpretado por Barry Nelson, vem visitar Wendy e Danny se recuperando, Kubrick o editou antes mesmo da estreia nos Estados Unidos, provavelmente julgando que era melhor terminar o filme sobre Jack. Esta cena está, portanto, ausente em ambas as versões.
[2] Ver Michel Ciment, Kubrick, Calmann-Lévy, edição de 2004, p. 181.
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