(tríler,
USA, 1999),
de M. Night Shyamalan.
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por Eduardo Valente
Contracampo/2004
Os usos do som no cinema de M. Night Shyamalan
O que une The Sixth Sense, Unbreakable [2000] e Signs [2002] é a presença clara de um conceito de trabalho sonoro onde o naturalismo puro e simples cede espaço a um delicado uso do som como criador de atmosfera (e neste sentido é importante notar que isto é bastante próximo do trabalho que Shyamalan extrai de seus fotógrafos), e como elemento diferenciado de linguagem. Shyamalan é um cineasta que se preocupa constantemente em lidar com as convenções de gênero trabalhando ainda próximo o suficiente delas, mas tentando subvertê-las a seu favor. Pode-se dizer que ele segue uma longa tradição americana de filmar dentro de um sistema essencialmente industrial, conseguindo responder a certos anseios de público, mas ao mesmo tempo cunhando uma obra absolutamente pessoal, cheia de pontos e preocupações temáticas em comum. Para exemplificar este ponto de forma bem rápida, basta olhar para os três filmes citados de forma bem direta: The Sixth Sense é um filme de “fantasmas” onde não há de fato uma ameaça em nenhum momento; Unbreakable é um filme de super-herói sem nenhum confronto ou trama de ação (e pode-se argumentar mesmo que sem herói); e Signs é um filme de ficção científica e invasão alienígena, sem qualquer cena da mesma invasão, de naves espaciais, ou de confrontos intergaláticos. Esta noção de usar a convenção, ao mesmo tempo em que se leva ela um tanto além, é um dos principais pontos do trabalho de Shyamalan — algo reiterado pelo som, como tentaremos ver a seguir. Trabalharemos os filmes em ordem cronológica para, a partir do segundo, começar com comentários comparativos que unam as obras.
Como mencionado acima, The Sixth Sense trazia um desafio em especial: trata-se de um filme de suspense-horror onde não há sequer um monstro ou ameaça real envolvidos. Portanto, e por definição do projeto, trata-se de um filme que vai necessitar essencialmente da noção de “clima” para conseguir o sucesso com o público (o que aliás, conseguiu). E, ao se falar em “clima”, quase sempre se fala de um cuidadoso trabalho entre roteiro, mise-en-scène e conceito de som para atingir os resultados que se procura. No que diz respeito ao som, o trabalho em The Sixth Sense é especialmente interessante pois, ao contrário de um exemplo como Signs, trata-se de uma opção detalhista e sutil de buscar muito mais uma subtração do que uma adição de efeitos.
Como uma das características comuns mais fortes nos filmes dele é justamente a ideia de trabalhar estes gêneros a partir do drama de um pequeno número de personagens, pode-se dizer muitas vezes inclusive que os filmes “se passam” dentro da cabeça destes mesmos personagens. Se isto é verdade de todos eles, em nenhum de forma tão forte como em The Sixth Sense : este conceito parece ser o principal no trabalho de som do filme, que reproduz esta visão “parcial” e aprisionada da realidade. A maneira mais direta com que podemos ver isso no filme é no trabalho com o som ambiente. Mesmo se passando numa grande cidade (Philadelphia), em The Sixth Sense todos os locais onde as cenas se desenvolvem parecem envoltos por um enorme vácuo sonoro. Há pouquíssimo uso de efeitos de som que criem ambiências externas (carros, buzinas, animais, murmurinho) e, em contrapartida, os ruídos feitos em cena pelos personagens, e suas vozes, são mixadas um tom acima do normal, com extrema clareza e limpidez. A impressão passada é a de um universo quase à parte, um enorme aquário por onde transitam estes dois personagens (os de Bruce Willis e de Haley Joel Osment). Acentua-se assim, essencialmente, a relação entre os dois, sempre.
Isto pode ser notado com maior clareza, por exemplo, na cena de Willis com sua mulher, no restaurante. Porque se antes poderia se dizer que os ruídos externos não estão mais presentes por serem distantes, ali a presença das outras mesas do restaurante (bastante cheio) é tornada um longínquo e abafado som ambiente. Deve-se notar, aqui, que a opção “radical” seria a eliminação total do ambiente de vozes — mas aí é preciso lembrar que Shyamalan quer brincar com as normas, mas sempre trabalhando dentro do cinemão popular de gênero: neste sentido, a supressão total de um som visualmente presente (como este caso do jantar) certamente se tornaria um incômodo ao espectador, indo contra o desejo do cineasta de conseguir uma imersão do mesmo no filme. Comparando o som do restaurante com o do velório, já mais para o final, vemos a semelhança que este tratamento cria entre dois ambientes a priori muito distintos. A notar-se ainda uma cena em hospital com a completa ausência dos “bips”, respiradouros e murmúrios em corredor que criam tipicamente este ambiente.
Na verdade, quartos de hospital, salas de casa e grandes igrejas acabam se igualando no opressivo silêncio que cerca os dois personagens. Este jogo torna-se notável, em especial, pelo contraste com alguns outros momentos do filme, como nas duas cenas em que vemos a personagem da mãe de Osment sozinha. Não é por acaso que ambos os momentos são aqueles em que surge uma música diegética no filme (no primeiro por conta de um radinho de pilha, no segundo por um walkman), e elas criam um ambiente externo que não está presente nunca nos sons ambientes que cercam os outros dois protagonistas, que de fato são os portadores da trama central.
Finalmente, temos a “libertação” final do garoto, ao conseguir “dominar seus medos”, simbolizado na cena da peça infantil, quando ele encena o clássico momento em que o Rei Artur retira Excalibur da pedra. Ali, junto com a espada, é como se o som se libertasse das amarras, e os ambientes se tornam mais altos e presentes. É importante notar, nesta relação do personagem de Osment com os ambientes que o cercam, que quando ele é punido na escola, de repente o som das crianças brincando do lado de fora torna-se altíssimo, para mostrar a “prisão” que diferencia este personagem da liberdade infantil que existe lá fora. Ou o uso da campainha da escola num certo momento, por exemplo, certamente alterada para se assemelhar muito com um grito, aproveitando o exato instante de tensão e desconforto em que é usada. Outro notável ruído é o do correr de um lápis pela mesa da mesma escola, ou ainda o giz no quadro negro. Pela separação do menino dos seus amigos, causada pelo seu “dom”, os ambientes com a presença destes meninos (como a escola) são sempre evidenciados como desconfortáveis para ele. Notemos isso em especial na cena da festa infantil, onde a presença dele é marcada pelo desconforto: a música que toca na festa, ao contrário de inocente (algo como um equivalente local à Xuxa) ou alegre, é uma soturna e assustadora melodia de órgão eletrônico — que remete a motivos infantis num contexto completamente deslocado.
A cena da festa, aliás, marca um outro importante uso do som: como antecipador. Se a principal revelação do filme será, por parte do garoto, de que “I see dead people”, antes de sabermos que ele as vê, já nos é dada a possibilidade de partilhar com ele a audição das pessoas mortas. Esta cena se dá justamente na festa, quando ele é trancado num armário pelos amigos. Naquele momento ainda não sabemos o que é aquela voz, mas depois quando ele fizer a revelação citada, entenderemos que ele também ouve dead people. Mais na frente será também através do som que o personagem de Bruce Willis ganhará convicção do dom do rapaz, por uma cena que envolve, justamente, o uso de um gravador — e que coloca em cena a temática do volume dos ruídos, com o personagem aumentando o volume para ouvir a gravação. Este momento, o mais marcante em relação à importância do som no filme, serve talvez como símbolo do trabalho todo do filme: a impressão de que precisamos aumentar o som para readquirir a possibilidade de ouvir o que está à nossa volta, saindo de um mundo opressivo interno. Talvez seja o único momento em que Shyamalan chame a atenção para o som, num filme que trabalha criativamente este elemento, sem jamais torná-lo distrativo ou dominante.
Lista de fantasy thriller no subgênero supernatural fiction:
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