segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Toque final

Ghost 
 
(tríler,
USA, 1990),
de Jerry Zucker.
 

 

por Paulo Ayres

Quando Sam Wheat (Patrick Swayze) se concentra e se esforça para objetivar sua força corporal na realidade, percebemos como Ghost é um filme preso na sua própria armadilha. Não aquela armadilha do universo de Ghostbusters (1984–), mas uma que também prende os ectoplasmas da trama. Veja bem, esse tríler sobrenatural não se serve dos seus elementos fantasiosos como instrumentos alegóricos auxiliando num determinado retrato do nosso contexto histórico. Pelo contrário: ao optar pela mais trivial ficção espírita, se desloca junto com o seu protagonista para um além presente e, ao mesmo tempo, ausente. Sam não é um simples narrador irônico fazendo uma retrospectiva de vida, como faz o Brás Cubas (1881) de Machado de Assis. O desenrolar do enredo será o falecido correndo, numa posição retardatária, para entrar novamente na realidade da qual saiu abruptamente. E tal processo de se fazer objetivo se dá em graus: primeiro como voz, depois como tato e, por fim, como imagem evanescente.

No entanto, Ghost não é nem mesmo um ensaio artístico sobre os sentidos corporais. Tudo se articula mecanicamente na superfície não sobrando espaço para entrelinhas dramáticas. A reflexão sobre o toque, por exemplo, não possui um tratamento mais ponderado para além dos extremos funcionais ao enredo: desde a cena brega, que entrou para a iconografia pop, do casal manipulando a argila no processo de cerâmica (com “Unchained Melody”, do The Righteous Brothers, ao fundo), até o momento em que Sam se faz presente como assombração, empurrando os vilões e derrubando vários utensílios para assustá-los. Aliás, na morte dos dois malvados — Carl Bruner (Tony Goldwyn) e Willie Lopes (Rick Aviles) —, o fantasma parece um vigilante realizando sua vingança, por mais que haja um intervalo manjado entre a sua intervenção e as mortes. Nesse sentido, os dois momentos em que surgem as sombras demoníacas são apenas a culminação ridícula na escolha de aprisionar esse fantasy thriller, junto com seu herói, ao tipo de conto mais banal e moralista sobre vida após a morte. Para fins de comparação, ver outro drama edificante com a mesma temática: Hereafter (2010), que, mesmo com suas insuficiências, apresenta o tratamento mais próximo do realismo que é possível para uma ficção “kardecista” (uma ficção com esse tema voltado a si mesmo).

Sem um Clint Eastwood, Ghost conta com a inusitada direção de Jerry Zucker. Junto ao seu irmão David e Jim Abrahams, Jerry fez seu nome realizando farsas como a trilogia The Naked Gun (1988–1994). Aqui injeta o elemento humorístico de maneira rígida e binária na composição dramática, encarnando a tendência de alívio cômico em Oda Mae Brown (Whoopi Goldberg). Se, por um lado, isso garante que Goldberg brilhe numa hilária interpretação carregada, por outro lado, desnivela essa abordagem trileresca como se tivesse núcleos esquemáticos, onde a trambiqueira médium da periferia tem como função fazer graça, enquanto Molly Jensen (Demi Moore) traz o componente lacrimoso. Por isso, é até estranho quando as duas estão juntas no mesmo quadro. Afinal, o fato de Ghost ser um dos dramas edificantes de amor mais famosos da história do cinema não quer dizer muita coisa, ainda mais quando o conteúdo em questão, além de limitado em seu maniqueísmo místico, é tão mal distribuído na narrativa.

Apesar de tudo, o filme flui bem em certos aspectos, como os diálogos entre Sam e Oda Mae, cujo o ápice divertido é o golpe (ou contragolpe) no banco; ou ainda, num tom mórbido e instigante, o misterioso fantasma do metrô, que, infelizmente, não dura tanto como potencial de desdobramentos conspiratórios. Ghost, desse modo, entretém enquanto um olhar incorporal sedento por voltar a ser agente do cotidiano e, igualmente, chateia enquanto uma “terra plana” de personagens unidimensionais, que quase fazem um triângulo amoroso — por duas vezes: uma com o vilão e a outra com a coadjuvante —, mas esse drama é assaz romantizado para permitir algo do tipo. Trocando em miúdos, falta corporeidade também a essa Nova York retratada e isso não tem nada a ver com uma metáfora encaixada. Resta o clima pertinente de melancolia enfatizado pela bela música de Maurice Jarre. No caso, mais que reflexão sobre a morte e a brevidade da vida, o filme é, em si mesmo, um sintoma sobre aquilo que poderia ter nascido, ter existido, mas não se desenvolveu, apenas tateou.

= = =
[0] Primeiro tratamento: 21/06/2021.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário