quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Cova aberta

Bonitinha, Mas Ordinária
 
(folhetim,
BRA, 1981),
de Braz Chediak.
 

por Paulo Ayres

Segunda adaptação cinematográfica da peça de Nelson Rodrigues, Bonitinha, Mas Ordinária ou Otto Lara Resende é uma sátira sexploitation em que uma frase — atribuída ao tal Otto, o título alternativo da peça e do filme — se torna uma espécie de mantra amaldiçoado, repetido à exaustão pelas personagens, indicando uma teia de sordidez que supostamente todo mundo estaria preso na nossa sociedade. A recorrência da frase “o mineiro só é solidário no câncer” favorece o tom de fábula no folhetim de mistério. O ex-contínuo Edgar (José Wilker), então, é um jovem canalha que se tornará reflexivo de sua condição, e do mundo que o cerca, quando encontra a alta canalhice da high society ao ser escolhido para ser genro do seu patrão — o mefistofélico Heitor Werneck, feito com veemência por Carlos Kroeber, com sua risada sinistra.

O polêmico estupro grupal é encenado em três versões e, na última, se revela uma prostituição grupal desejada por Maria Cecília (Lucélia Santos). O mesmo não se pode dizer da cena pesada em que as irmãs mais novas da prostituta Ritinha (Vera Fischer) são estupradas para o deleite sádico de grã-finos, que acompanham aquilo extasiados. Usando uma trilha sonora angustiante na sequência, o diretor Braz Chediak exagera no retrato da dominação classista, salientando o abismo social. Sutileza é colocar um quadro do presidente autocrata João Figueiredo numa repartição pública, num flashback em que Ritinha conta como o abuso em um local de trabalho desencadeou a sua vida de meretrício.

Enfim, esse Bonitinha, Mas Ordinária é um folhetim criminal feito no crepúsculo da autocracia burguesa no Brasil, e isso se soma com o desfecho luminoso em que o casal apaixonado é banhado pelo nascer do sol. Diferente de A Dama do Lotação (1978), que atolou no naturalismo, ocorre uma vitória sobre a ideologia determinista. Edgar se livra do destino de ser um Peixoto (Milton Moraes), isto é, um patife de marca maior, mas certa rigidez também está na sua projeção de constituir a própria família nuclear. Mesmo que, em momentos assim, o teor dos diálogos enfáticos seja hipócrita, há a afirmação de uma sátira edificante de linhagem avançada.

= = =
Lista de crime feuilleton no subgênero da mystery fiction:
[0] Primeiro tratamento: 30/11/2021.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário