por Paulo Ayres
Segunda adaptação cinematográfica da peça de Nelson Rodrigues, Bonitinha, Mas Ordinária ou Otto Lara Resende é uma sátira sexploitation em que uma frase — atribuída ao tal Otto, o título alternativo da peça e do filme — se torna uma espécie de mantra amaldiçoado, repetido à exaustão pelas personagens, indicando uma teia de sordidez que supostamente todo mundo estaria preso na nossa sociedade. A recorrência da frase “o mineiro só é solidário no câncer” favorece o tom de fábula no folhetim de mistério. O ex-contínuo Edgar (José Wilker), então, é um jovem canalha que se tornará reflexivo de sua condição, e do mundo que o cerca, quando encontra a alta canalhice da high society ao ser escolhido para ser genro do seu patrão — o mefistofélico Heitor Werneck, feito com veemência por Carlos Kroeber, com sua risada sinistra.
O polêmico estupro grupal é encenado em três versões e, na última, se revela uma prostituição grupal desejada por Maria Cecília (Lucélia Santos). O mesmo não se pode dizer da cena pesada em que as irmãs mais novas da prostituta Ritinha (Vera Fischer) são estupradas para o deleite sádico de grã-finos, que acompanham aquilo extasiados. Usando uma trilha sonora angustiante na sequência, o diretor Braz Chediak exagera no retrato da dominação classista, salientando o abismo social. Sutileza é colocar um quadro do presidente autocrata João Figueiredo numa repartição pública, num flashback em que Ritinha conta como o abuso em um local de trabalho desencadeou a sua vida de meretrício.
Enfim, esse Bonitinha, Mas Ordinária é um folhetim criminal feito no crepúsculo da autocracia burguesa no Brasil, e isso se soma com o desfecho luminoso em que o casal apaixonado é banhado pelo nascer do sol. Diferente de A Dama do Lotação (1978), que atolou no naturalismo, ocorre uma vitória sobre a ideologia determinista. Edgar se livra do destino de ser um Peixoto (Milton Moraes), isto é, um patife de marca maior, mas certa rigidez também está na sua projeção de constituir a própria família nuclear. Mesmo que, em momentos assim, o teor dos diálogos enfáticos seja hipócrita, há a afirmação de uma sátira edificante de linhagem avançada.
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