sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sessão psicanalítica

A Menina e o Estuprador

(folhetim,
 BRA, 1982),
 de Conrado Sanchez.


 
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por Andrea Ormond
Estranho Encontro/2011

Nos jogos eróticos da Boca havia sempre um mato, inferno verde onde personagens — notoriamente os femininos — expurgavam pecados e vícios. É dessa forma que encontramos a menina Vanessa (Vanessa Alves), subjugada pelo homem negro, que a coloca de bruços, levantando sua saia. Em seguida, descobrimos que nada daquilo acontecia de fato: Vanessa estava delirando. De certa forma, compartilha seu delírio com o do espectador, ávido na poltrona do cinema por uma espécie de punição, de humilhação ao ente mulher. Indefesa, bumbum inocente à mostra, disponível para um qualquer, Vanessa celebra nossos esgares sádicos, perversos. E reafirma o ethos selvagem e fascinante do meio em que sobrevivia como atriz.

Conrado Sanchez, diretor de A Menina e o Estuprador, será lembrado para sempre na história do cinema brasileiro como o gênio de Cinderela Baiana (1998), cinebiografia de Carla Perez que tornou-se objeto de assombro. Porém, dezesseis anos antes de sua magnum opus, Conrado estreava na direção com essa produção baratíssima, feita às pressas por encomenda de Antonio Polo Galante. O roteiro que escreve e filma é Freud puro: Vanessa guarda um trauma. Esse trauma retorna através de sonhos/delírios. Lembrado, desrecalcado, o trauma deixa de ser trauma e Vanessa torna-se, repentinamente, feliz e plena. Toma banho de cachoeira, entrega-se de verdade a um namorado real.

Entre começo e fim o recheio é obsessivo, repugnante. Mas Conrado sabe, em última instância, que o ser humano é fraco e não presta. Portanto, gosta daquilo. A atriz Vanessa Alves era adolescente de 18, 19 anos, no auge da beleza física, e os seios, a boca e até as mãos ganham um aspecto de pureza devassada. Diferente de outras baluartes — Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Zilda Mayo — em que a sexualidade madura nos convida a sonhá-las plenamente, a de Vanessa Alves transparece inefável. Em ação magoa, dói, constrange.

À parte os problemas sexuais, Vanessa mora em uma casa típica das produções da Boca, escoltada pela empregada (Jussara Calmon) e pelo motorista Pedro (Zózimo Bulbul). A óbvia discussão sobre racismo na maneira em que se aborda a figura do negro é plenamente válida. Embora tudo se explique no final, há um exploitation, um sensacionalismo em volta dos abusos repetidos, como se a famosa sequência de Lucélia Santos em Bonitinha Mas Ordinária [1981] ganhasse um filme inteiro só pra si. Além disso, a trilha-sonora de Jairo Ferreira apela até para o LP Missa Luba, do coro “Les Troubadours du Roi Baudouin”. Imaginemos um filme em que uma heroína negra fosse estuprada por wasps ao som de “Yellow Rose of Texas” e teríamos a mesma exaltação da raça e seus símbolos como discrepância entre dois seres humanos. Nem D. W. Griffith, em sequência animadíssima, faria pior.

Pilotando um Passat branco, poltronas de couro, quatro portas, o motorista carrega Vanessa de um lado para outro, enquanto ela delira. Cabe à amiga libertina, Denise, as sequências de sexo “saudáveis”, inclusive com o psicanalista (Rubens Pignatari) que atende ambas. Estávamos no limiar do pornô, o que gera observação interessante: em Vanessa, os algozes passam mãos, línguas, no máximo roçam o colo entre as suas pernas. Em Denise chega-se às vias de fato: no coito à beira da represa de Guarapiranga e no fellatio estilo cama-de-motel, lugar comum a partir daquele período em tantas cenas que os próprios atores e diretores não devem se recordar de nenhuma.

Talvez a maior qualidade de A Menina e o Estuprador esteja mesmo em seus aspectos deprimentes, torpes. Eles não nos iludem, não nos prometem nada. Não são a graça humorística de Cláudio Cunha em Oh! Rebuceteio [1984], nem tão pouco a vergonha de um Jean Garrett dirigindo pornôs sob pseudônimo. Conjugam a nudez de uma ninfeta lindíssima com fantasias imundas, sacodem psicologia de botequim e, ao fundo, ouvimos ainda “Another Brick in the Wall”, do Pink Floyd. No meio de tantos brasileiros, descesse um marciano para também tirar uma casquinha de Vanessa, Antonio Polo Galante venderia tranquilamente o petardo como ficção científica. Tudo era uma questão do que o público acatasse. E o público andava turbinado, pronto para qualquer coisa.

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Lista de crime feuilleton no subgênero da mystery fiction:
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