O Homem Que Virou Suco
(folhetim,
(folhetim,
BRA, 1980),
de João Batista de Andrade.
de João Batista de Andrade.
por Paulo Ayres
Aparentemente, O Homem Que Virou Suco possui uma trajetória circular. Começa nas margens do sistema, passa pelo interior da formação social e do modo de produção capitalista, retornando, enfim, para as margens. No entanto, é uma espiral porque Deraldo (José Dumont) amplia sua consciência e se transforma no percurso sem se conciliar com essa sociabilidade. Poeta lúmpen, o retirante paraibano está vendendo poesia nas ruas da maior cidade da América do Sul. E se São Paulo é a locomotiva do Brasil, os trabalhadores pobres e imigrantes são a locomotiva de São Paulo. Ao redor desse artista marginalizado, o retrato da periferia miserável e do centro que fervilha gente. Sem perder o fio do enredo, o cineasta João Batista de Andrade igualmente se interessa em registrar o material humano que sustenta a metrópole ou apenas sobrevive nela de algum jeito. Exemplo disso são as belas sequências do farol da polícia iluminando uma favela na escuridão e revelando seres humanos ali, e o momento fraternal da leitura da carta para os proletários analfabetos, enquanto a imagem lentamente dá um giro de 360º para captar aqueles olhares atentos. Se em Amarelo Manga (2002), um drama naturalista, os rostos reais das camadas populares formam uma massa passiva e angustiante, em O Homem Que Virou Suco, uma sátira realista, as figurações semidocumentais se integram na narrativa como corpos moventes e olhares curiosos para a câmera, transmitindo a sensação ativa de humanidade em sobrevivência rotineira.
O folhetim se constrói numa mistura de registros. A proposta de encenação de Andrade é preencher boa parte das sequências — geralmente as externas — interagindo com o ambiente real do cotidiano urbano. Há uma mescla do caráter quase documental com a artificialidade satírica das performances. A aparência de improvisação se torna um tipo de jogo interativo em que o tom maior de José Dumont fornece a possibilidade de suspender reflexivamente a cotidianidade por onde passa. Para falar de um trabalhador avulso, Andrade escolheu um estilo avulso de filmar. Para falar de coisificação, escolheu uma dialética de interação cênica em que o protagonista “artificial” — no sentido satírico — funciona como um elemento desestabilizador da normalidade “artificial” — no sentido da sociedade burguesa. Contudo, o desejo de ser uma trama simbólica tem, às vezes, um exagero residual, amolecendo um pouco
o humanismo concreto do filme.
Com um enredo sobre um assassinato, O Homem Que Virou Suco é um mystery feuilleton incomum. O homicídio está no prólogo: um operário fabril chamado José Severino da
Silva (José
Dumont também) mata com uma peixeirada o patrão, megaempresário gringo, numa
cerimônia em que recebe um prêmio de “operário símbolo”, ou seja, o
prêmio de produtivista e puxa-saco. Deraldo, o sósia desse outro nordestino, é o protagonista que foge da polícia por ser confundido com ele. A questão, então, não se mostra em investigar porque eles são tão parecidos fisicamente, mas salientar o aspecto metafórico da identidade e da não identidade que há entre os dois personagens. A jornada do rebelde Deraldo, que possui um espírito
transgressor de cangaceiro, é, em suma, o processo de conhecimento do
seu duplo invertido. O cearense Severino é seu
negativo: vivendo como um “boi manso”, ele perde o juízo por
reprimir muito sua humanidade e sua identificação social e classista, ao
se coisificar ainda mais como cagueta patronal. Por outro lado, o protagonista enquanto um “touro indomável” aprende a não ser tão impetuoso, tendo que buscar alguma flexibilidade até para ampliar sua liberdade parcial e meios de sobrevivência e resistência. Denuncia o sistema, mas formaliza juridicamente sua arte de rua. Em suma, Deraldo é espremido na pobreza, mas o homem que virou “suco” é Severino.
O artista solitário se torna um andarilho entrando no mercado de trabalho pela necessidade
de sua sobrevivência em condições emergenciais. Deraldo não se conforma com as normas exploratórias do trabalho assalariado, e, portanto, acha confusão com os
servidores de comando e os patrões. Esse é o motor do folhetim de Andrade que o desloca numa jornada passageira de ambientes. Na variedade da classe trabalhadora, Deraldo entra em contato com o núcleo do operariado, que cria a massa global de valor excedente que se esparrama em desnível por todo o tecido social. Não participando desse suco concentrado da construção civil, tem a experiência de trabalhador doméstico e, depois, cai na sarjeta para ser resgatado por uma instituição — na presença de uma dondoca
filantrópica que se promove ajudando moradores de rua. Expressões distintas e complementares de uma mesma reprodução social alienada.
Curiosamente, essa forma de sociabilidade quase transforma também em bagaço esse grande filme que foi vencedor do prêmio principal no Festival de Moscou em
1981. O Homem Que Virou Suco reflete sua temática até na própria história enquanto produto artístico vulnerável:
uma película cinematográfica deteriorada que passa por um processo
cuidadoso de restauração concluído em 2006. Praticamente um renascimento
por um novo coletivo e auxiliado pelo fotógrafo do filme Aloysio Raulino.
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Lista de historical feuilleton no subgênero crime fiction:
- Observação participante
- Oeste realista
- Cidade fantasma
- Embriaguez realista
- Vigília realista
- Emprego realista
- Cova aberta
- Sessão psicanalítica
- Cidade realista
- Chute circular
- Manutenção corretiva
- Fonte secundária
- Comercial inclusivo
- Alvo móvel
- Sátira asséptica
- Direção perigosa
- Registro duplicado
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