terça-feira, 25 de julho de 2023

Sátira asséptica

Mulheres Apaixonadas

(folhetim,
BRA, 2003),
de Manoel Carlos.


  
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por Felipe Bragança
Contracampo/2003

Amor, lavanda e bossa nova

Amor e higiene. Esses parecem ser os referenciais centrais para a busca da felicidade e da realização pessoal em Mulheres Apaixonadas.

Regidas pelos mais que habilidoso Manoel Carlos, e dirigidas por seu parceiro recorrente Ricardo Waddington, as primeiras semanas da nova “novela das oito” tem se destacado como espaço crucial de representação de uma certa vivência urbana brasileira. Longe de ser um mero retrato cronista da realidade das classes mais abastadas do Rio de Janeiro, o novo trabalho do autor de Por Amor [1997–1998], História de Amor [1995–1996] e Laços de Família [2000–2001] (entre outras), se caracteriza por um imbricado elogio a um certo modo de vida baseado nas dinâmicas da ordenação e da limpeza como formas de práticas busca do prazer. A sustentação da felicidade e do bem-estar através de ferramentas cotidianas de compartimentação da vida em cenários escalonados, se apresenta não apenas como objeto de observação, portanto, mas como motor e carne mesma das práticas políticas ali encenadas.

Sejam nos núcleos onde a felicidade já reina, como naqueles em que ela se coloca em questão, as personagens se articulam entre pequenos e grandes rituais de purificação. Sejam nos empregados perfeitamente uniformizados, seja na questão que envolve a possível internação de um casal de idosos num asilo, Mulheres Apaixonadas se desenvolve contrapondo justamente a contaminação do desajuste (a presença dos avós indesejados) e o ideal da assepsia como formato do bem-viver.

A profusão de cenas de piscina, dos planos subaquáticos, das cenas de banhos (do chuveiro às banheiras de hidromassagem) e águas correntes sob céu azul, presentificam o que poderia ser considerado o leitmotiv de todas as suas personagens: o desejo purificador, o sentimento de satisfação que as façam deslocar-se de sua condição cotidiana para uma dimensão etérea de amor (a trama de Helena). A facilidade com que as personagens fazem amizades e expressam sua felicidade em pequenos rituais diários de adequação aos cenários, ferramentas e ambientes, se sintetiza no espaço da utópica escola dirigida pela protagonista.

A significação da escola como um universo de lazer para os jovens, onde as alegrias são canalizadas de forma saudável (vide a recorrência da imagem da piscina), é apenas um dos exemplos dessa canalização da vida que se desloca da urbanidade comum, compartilhada (polis). Casas de praia e montanha, apartamentos de cobertura, mansões, restaurantes, funcionam como um mapeamento, uma roteirização do cotidiano como passagens por uma série de espaços funcionais articulados, interdependentes, mas que mantém a não contaminação entre suas funções.

Mesmo que essa representação do cotidiano da alta classe média já tenha sido trabalhada em telenovelas que incluem de Malhação [1995–2020] a outros trabalhos de Manoel Carlos, em Mulheres Apaixonadas, o autor consegue ir além: a estética da pureza e a ética da realização pessoal não só estão presentes, como se configuram em uma verdadeira dietética (modus operandi) de vida. Uma dinâmica que se circunscreve não apenas como retrato de um certo universo socioeconômico recortado mas, principalmente, que alcança os pormenores afetivos das personagens, se fazendo, efetivamente, como formato para os discursos.

Uma pequena sequência como a da “noite da pizza” promovida pela personagem de Suzana Vieira nos capítulos entre os dias 10 a 13/03/2003, pode servir de rico referencial para a estrutura dramatúrgica e para as temáticas com ela entrelaçadas.

Prazer e beleza, fazem eco com ordenação e higienização — traduzidas também de forma direta na transformação que o personagem Expedito (homem do interior) sofre nas mãos de sua protetora: seus cabelos são cortados, sua barba é raspada, o rosto marcado pelo sol da fazenda é transcriado na imagem de uma limpeza de perfume adocicado e formas equilibradas. “A cara do Rio de Janeiro”, arremata uma personagem na reunião de amigos — todos concordam.

Se essa transformação é o eixo central da sequência, alguns outros detalhes que compõe o quadro não nos deixam crer se tratar de uma característica pontual. A própria circunstância em que a tal apresentação do novo (e limpo) personagem se dá, é característica: uma reunião de amigos para a inauguração da “nova pizzaria caseira”.

Mais uma vez, o que se procede é a celebração desse mapeamento dos espaços: o lugar celebrado para a realização de pizza. Não qualquer pizza, mas a pizza caseira de aparência artesanal. Não um “artesanal” cotidiano, calcado na simplicidade, mas um certo tipo de “artesanato” caracterizado por uma diferenciação, de uma “especialidade”. A imagem de Cláudio Marzo vestido de pizzaiolo (avental e chapéu de chef), fazendo a pizza para sua família e amigos reafirma essa higienização cotidiana e demarcação tipificada das práticas, isso é: uma uniformização (no duplo sentido) dos espaços-rituais como forma de tipificação interna. Essa prática vai um pouco além, quando a personagem de Marzo se retira (ileso: sem suor, sem cansaço) de seu trabalho e o passa a um outro personagem. Este, por sua vez, também coloca seu avental e o chapéu de chef, conformando-se ao espaço, ocupando o lugar mapeado de chef. Nenhuma flexibilidade, nenhuma contaminação é observada nessa cena — todos os personagens dispostos na varanda do apartamento se harmonizam nessa leveza de eventos, em que nada foge de seu espaço, onde tudo tem seu lugar de ser. Celebração, em suma.

O que é mais marcante em cenas como a acima descrita é o modo como, em Manoel Carlos, elas não se precipitam apenas como uma alienação socioeconômica em relação a realidade massificada do país, mas como exercício dramatúrgico de comentários intra-trama que funcionam como microscópicas representações do discurso da beleza pura. Dando à ela, a voz direta de uma política da felicidade asséptica. Não se trata, portanto, de se fazer aqui uma cobrança sociologizante de que a novela de Manoel Carlos melhor descreva a vida diária da grande massa da população. A questão é mais profunda, isso é: na escolha e retrato desse universo imaginário da alta classe média carioca, o autor faz um recorte e monta os capítulos e diálogos como uma forma de reiteração não da existência ou interesses estéticos desse modo de vida, mas como forma de elogio da ordem e da vida em sobrevoo: ícones do bem-estar, de um Rio de Janeiro de beleza clássica. Em detrimento dos descompassos, do não acomodado, das contaminações, Manoel Carlos montou em Mulheres Apaixonadas um verdadeiro tubo de ensaio do ideal burguês de felicidade baseada na quantidade de compartimentações funcionais da vida. Quanto mais partes, mais vida: quantos mais cômodos na casa, quantas mais ‘pizzarias caseiras’ se tiver, quanto maior for a piscina do clube-escola, quanto mais casas de campo forem possíveis...

A mistura, a convivência com o lugar não controlado se caracterizam como um alterego silencioso dessa satisfação — exemplo na questão sobre o casal de idosos, que, vivendo na casa da filha não conseguem se conformar a esse lugar e se colocam como uma das questões morais da trama. Os idosos são os excluídos de Manoel Carlos, ou melhor, são aqueles que durante a novela deverão encontrar seu espaço de escalonamento com as demais personagens: para onde vão os idosos? Qual o lugar dos idosos? Essa parece ser uma das obsessões da trama. Dar lugar de satisfação a esses sem-lugar — os desejos higiênicos como propulsores de um rearranjo social.

E multiplicam-se os sorrisos e gargalhadas elegantes (todas). Um certo deslumbramento, associada aos movimentos de velocidade e sobrevoo: daí se multiplicam as cenas de natação, as cenas de bicicletas, as cenas de asa-delta, as cenas de motocicletas. Todas cadenciadas pela brisa leve, pelo movimento que atravessa as paisagens. Gestos que pouco tocam os pés no chão, vagueiam sob a trilha sonora amena e adocicada. Músicas que, em geral retiradas do repertório da Bossa Nova, são utilizadas como comentários constantes e quase ininterruptos de uma certa atmosfera carioca, presentificada pela leveza dos pés que planam sobre os cenários e trocam olhares.

Manoel Carlos, que, em outras ocasiões tinha praticado interessantes choques criativos entre os modos de vidas de personagens divergentes (em Por Amor isso é mais marcante), mantém uma curiosa tendência de sua obra na última década: a da passagem gradativa de sua atenção dos personagens de classe média baixa para os de classe média alta. Excluindo aos poucos, e aqui em Mulheres isso alcança níveis inéditos, o elemento do “descompasso de hábitos” entre seus personagens — comuns em tramas anteriores.

O que é mais impactante em Mulheres Apaixonadas (e por vezes, irritantemente previsível) é a forma com que todos elementos narrativos funcionam em extrema harmonia e monotonia dentro da trama — onde trilha sonora, direção e texto funcionam para insuflar uma só e mesma nota com uma firmeza admirável. Onde os núcleos (elementos comuns das telenovelas) são usados como a coluna cervical que rege a vida das personagens: servindo de bases por onde elas tem de passar para cumprir seus papéis sociais. Mais que isso: para serem relevantes na trama, as personagens tem de frequentar (termo corrente) esses espaços.

Corpos que flutuam. Essa sanitarização dos hábitos, não dificilmente, nos levaria a lembrar de uma certa vertente de produtos voltados ao público feminino comumente propagada pela TV. Do anúncio de margarina à propaganda de absorventes íntimos, passando pelas imagens que vendem yogurts naturais, produtos de beleza e afins, não é difícil encontrar o mesmo tipo de ideal de saúde e pureza, de leveza do corpo (o culto ao corpo e à magreza se misturam aqui com a da leveza de espírito). Enfim...

Dramaturgia de “música de elevador”, estética de hidromassagem. Uma narrativa que transforma uma certa rotina urbana de dois ou três bairros da Zona Sul carioca em expressão existencial do autoconhecimento. E isso nada tem a ver com a beleza confessional de um filme como o recente Separações [2002], de Domingos Oliveira. Pois se em Domingos há uma voz apaixonada (quase brega) pelos cheiros e cores de seus bairros do coração; em Mulheres Apaixonadas, faz-se justamente o elogio do que não tem cheiro, dos odores programados, dos gestos “detergênicos”. Conduzidos todos, habilidosamente, ao grande banho final.

Uma novela de autoajuda? Talvez... E haja óleo de banho!

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Lista de crime feuilleton no subgênero da mystery fiction:
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