quarta-feira, 26 de julho de 2023

Ensaio aberto

Birdman
or (The Unexpected Virtue of Ignorance) 
 
(dramédia,
USA, 2014),
de Alejandro González Iñárritu.
 


= = =
por João Lameira
À Pala de Walsh/2015

No momento em que Alejandro González Iñárritu deixou o (ou foi deixado pelo) argumentista Guillermo Arriaga — com quem trabalhou nos seus primeiros três filmes, Amores Perros (2000), 21 Grams (2003) e Babel (2006) —, abandonou também o filme mosaico, no qual personagens e situações se multiplicavam para se afunilarem no fim, e a desconstrução temporal, que exigia ao espectador a reorganização cronológica do enredo. Boa parte dos críticos do realizador mexicano enjoaram-se desta marca autoral, vista como puro gimmick. Os mesmos encontrarão novo gimmick em Birdman, a mais recente obra de Iñárritu, filmada num só plano-sequência falsificado (há diversos cortes invisíveis).

Dessa falsificação, não viria mal ao mundo. The Rope (1948) de Alfred Hitchcock, um dos mais famosos filmes-sequência, também escondia uns quantos cortes, embora esses fossem impostos pelas limitações técnicas da altura. Iñárritu, pelo contrário, usa-os por facilidade e para poder pular de edifício em edifício, voar sobre Nova Iorque e dar saltos temporais (estes últimos, os únicos que se aproveitam). Explicando melhor, a falsidade do plano-sequência de Hitchcock devia-se a uma impossibilidade, a do mexicano aos facilitismos das novas tecnologias, principalmente da pós-produção, deixando um travo de chico-espertice. No entanto, não deixa de ser interessante que Iñárritu, para quem a montagem foi tão importante, se entregue em Birdman a um processo radicalmente diferente [aliás, o mesmo se pode escrever de Hitchcock e das experiências de The Rope e Under Capricorn (1949), com resultados obviamente diversos, tendo em conta as qualidades de cada um].

Menos recomendáveis são os discursos fáceis contra as redes sociais (mais parece escrito por Aaron Sorkin), a indústria do cinema, a proliferação de blockbusters de super-heróis — se bem que seja assustador a quantidade de bons actores que já entraram em produções do género, incluindo alguns de Birdman: Michael Keaton, o Batman de Tim Burton, e Edward Norton, que já despiu as vestes de Hulk —, a crítica (revelando um ressabiamento que quase leva o filme ao suicídio), e a favor da integridade artística, revelada no alcoolismo, loucura e péssimo feitio do artista torturado, e da criação como processo auto-destrutivo [no que é uma espécie de versão de All That Jazz (1979) do realizador-coreógrafo Bob Fosse]. E a tendência para o realismo mágico (aquela cena final, com a filha a olhar para o céu, indesculpável) a estragar o que de bom o filme tem — muito bem que o sobrenatural pode ser interpretado como representação da demência das personagens, mas não deixa de ser retratado como tal.

Então e o que tem Birdman de bom? Além dos solos de bateria de Antonio Sánchez que propulsionam a banda sonora, o teatro e os actores. Começo pelos últimos: é um prazer rever Michael Keaton e Edward Norton, ambos meio desaparecidos — Norton em filmes esquecíveis e Keaton sabe-se lá onde —, em papéis de destaque e a deleitarem-se com a oportunidade, engrandecendo os diálogos pretensiosos, dando até algum charme à patetice geral, transformando-a numa brincadeira divertida (que, reconheço, também está presente no argumento e na realização; no fundo, o filme é uma sátira um tanto indigesta). Se, à excepção de Emma Stone (que faz basto uso dos olhos gigantescos), o restante elenco não tem muito que fazer, não deixa de ser apreciável: Amy Ryan, Naomi Watts, Zach Galifianakis. Acabo com o primeiro: disse-se e escreveu-se e é verdade que Birdman era o regresso de Michael Keaton aos grandes papéis, mas o verdadeiro protagonista do filme é o teatro. E surge, assim, de uma longa e grata tradição no cinema norte-americano: 42nd Street (1933) de Lloyd Bacon; All About Eve (1950) de Joseph L. Mankiewicz; Opening Night (1977) de John Cassavetes; Noises Off... (1992) de Peter Bogdanovich; Synedoche, New York (2008) de Charlie Kaufman. Mostra as mesmas dúvidas dos bastidores, as mesmas crises de confiança dos actores, as mesmas mudanças de última hora, com os mesmos fulgor, curiosidade e pormenores.

Filmado dentro e à volta do St. James Theatre na Broadway (e aura desse teatro dá-lhe qualquer coisa, indefinível), Birdman é um Noises Off... menos divertido, um Synedoche, New York menor, cuja grandiloquência, apesar de irritante muitas vezes, é vencida pelo amor à quinta arte.

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