Possuídas Pelo Pecado
(folhetim,
BRA, 1976),
de Jean Garret.
= = =
por Andrea Ormond
Estranho Encontro/2006
Falar dos filmes da Boca do Lixo — principalmente aqueles feitos entre 1974 e 1984 — é um prazer revigorante, tanto quanto assisti-los. Toda aquela mistura de vulgaridade recatada e cinismo de valores — aquilo que os atuais tempos caretas chamam de politicamente incorreto — tornam a maior parte do cinema da Boca diversão compulsiva para quem se embrenha por sua fortuna.
Vejamos, por exemplo, o caso dos filmes de Jean Garrett. Transferida para qualquer outra realidade menos estigmatizada, a cinematografia do diretor mereceria enxurradas de estudos acadêmicos, tamanha sua riqueza e possibilidades de interpretação. Filmes como Tchau, Amor [1982], O Fotógrafo [1980], Amadas e Violentadas [1975], Karina, Objeto do Prazer [1982] e Possuídas Pelo Pecado vão muito além das titulações sensacionalistas, produzidas no afã de atraírem o transeunte que, na porta do cinema, vacilasse entre uma sessão ou outra depois do expediente.
Claro que os felizardos que em 1976 assistiram a Possuídas Pelo Pecado, no Marrocos ou no Marabá, com certeza não o fizeram apenas por conta do talento cinematográfico de Garrett. Belas mulheres, nudez à vontade, temas palpitantes — eram estas as motivações do espectador padrão do cinema da Boca naqueles anos. Mas, por trás dessa necessidade comercial, havia dedicados artistas de cinema, que mergulhados no imaginário popular e atendendo às demandas específicas do mercado consumidor, foram capazes de produzir filmes interessantíssimos.
Que toda essa introdução prepare o leitor para a surpresa, livre de preconceitos ou hipocrisias, de um roteiro tão contundente quanto o de Possuídas Pelo Pecado. Uma das melhores produções da Dacar e um dos três filmes que Jean Garrett inicialmente dirigiu para David Cardoso, a trama cheia de reviravoltas rocambolescas mostra um homem rico e amargurado, Doutor Leme (Benjamin Cattan), que sustenta à sua volta um pequeno séquito de criados, no qual se destacam duas “secretárias”, Jussara (Zilda Mayo) e Anita (Helena Ramos, irreconhecível), sendo Anita alcoólatra terminal, introduzida no vício pelo milionário que tortura a moça seguidamente em troca de bebida.
De tão agressivos, os arroubos humilhantes do homem para com a empregada chegam a ser ridículos; ainda assim, provocam certa viração no estômago de quem não está acostumado ao mondo cane: “Beija, meus sapatos”, ordena — e Anita, lascivamente, obedece.
Garrett tinha obsessão por este tipo de dinâmica, pois há cena parecida em Tchau, Amor, envolvendo Antônio Fagundes e as sandálias de Angelina Muniz. Aqui, em troca das garrafas do whisky que bebe com sofreguidão, a personagem de Helena Ramos se submete até a um patético striptease — além, claro, de sucessivas bolachas e xingamentos, pelas razões mais pueris possíveis.
No meio desse hospício, a entourage tenta sobreviver: esposa (Meiry Vieira), o motorista André (David Cardoso), o desenhista Marcelo (Agnaldo Rayol, compadre de David e proprietário do belo refúgio que serviu de set), a empregada Isaura e sua filha Dorinha (esta última, Nicole Puzzi, muito jovem) — todos doentes pelo mecenato do tresloucado Leme. Arma-se, então, um intrincado plano para roubarem a fortuna do velho.
Ody Fraga — roteirista desta e de tantas outras produções da Dacar — faz seu papel, criando plots satisfatórios até a apoteose final, que sugere, cinicamente, a velha máxima do “dinheiro não traz felicidade.”
Possuídas Pelo Pecado rende aos incautos combustível suficiente para uma velha acusação ao cinema da Boca, aquela que o classifica como ultra-machista. Evidências não faltariam: as personagens mulheres se dividem entre femme fatales picaretas ou bobas de carteirinha. Mas percebam melhor a empregada Isaura, com seu pragmatismo sistemático; e o movimento final de Anita, vencendo a submissão e se associando à esposa do chefe.
Fica evidente que, por vezes, até na Boca o girl power funcionava, apesar de eventuais disposições contrárias — as quais, com certeza, deixariam Betty Friedan com vontade de virar um cálice de café nas arriflex da turma do Soberano.
Vejamos, por exemplo, o caso dos filmes de Jean Garrett. Transferida para qualquer outra realidade menos estigmatizada, a cinematografia do diretor mereceria enxurradas de estudos acadêmicos, tamanha sua riqueza e possibilidades de interpretação. Filmes como Tchau, Amor [1982], O Fotógrafo [1980], Amadas e Violentadas [1975], Karina, Objeto do Prazer [1982] e Possuídas Pelo Pecado vão muito além das titulações sensacionalistas, produzidas no afã de atraírem o transeunte que, na porta do cinema, vacilasse entre uma sessão ou outra depois do expediente.
Claro que os felizardos que em 1976 assistiram a Possuídas Pelo Pecado, no Marrocos ou no Marabá, com certeza não o fizeram apenas por conta do talento cinematográfico de Garrett. Belas mulheres, nudez à vontade, temas palpitantes — eram estas as motivações do espectador padrão do cinema da Boca naqueles anos. Mas, por trás dessa necessidade comercial, havia dedicados artistas de cinema, que mergulhados no imaginário popular e atendendo às demandas específicas do mercado consumidor, foram capazes de produzir filmes interessantíssimos.
Que toda essa introdução prepare o leitor para a surpresa, livre de preconceitos ou hipocrisias, de um roteiro tão contundente quanto o de Possuídas Pelo Pecado. Uma das melhores produções da Dacar e um dos três filmes que Jean Garrett inicialmente dirigiu para David Cardoso, a trama cheia de reviravoltas rocambolescas mostra um homem rico e amargurado, Doutor Leme (Benjamin Cattan), que sustenta à sua volta um pequeno séquito de criados, no qual se destacam duas “secretárias”, Jussara (Zilda Mayo) e Anita (Helena Ramos, irreconhecível), sendo Anita alcoólatra terminal, introduzida no vício pelo milionário que tortura a moça seguidamente em troca de bebida.
De tão agressivos, os arroubos humilhantes do homem para com a empregada chegam a ser ridículos; ainda assim, provocam certa viração no estômago de quem não está acostumado ao mondo cane: “Beija, meus sapatos”, ordena — e Anita, lascivamente, obedece.
Garrett tinha obsessão por este tipo de dinâmica, pois há cena parecida em Tchau, Amor, envolvendo Antônio Fagundes e as sandálias de Angelina Muniz. Aqui, em troca das garrafas do whisky que bebe com sofreguidão, a personagem de Helena Ramos se submete até a um patético striptease — além, claro, de sucessivas bolachas e xingamentos, pelas razões mais pueris possíveis.
No meio desse hospício, a entourage tenta sobreviver: esposa (Meiry Vieira), o motorista André (David Cardoso), o desenhista Marcelo (Agnaldo Rayol, compadre de David e proprietário do belo refúgio que serviu de set), a empregada Isaura e sua filha Dorinha (esta última, Nicole Puzzi, muito jovem) — todos doentes pelo mecenato do tresloucado Leme. Arma-se, então, um intrincado plano para roubarem a fortuna do velho.
Ody Fraga — roteirista desta e de tantas outras produções da Dacar — faz seu papel, criando plots satisfatórios até a apoteose final, que sugere, cinicamente, a velha máxima do “dinheiro não traz felicidade.”
Possuídas Pelo Pecado rende aos incautos combustível suficiente para uma velha acusação ao cinema da Boca, aquela que o classifica como ultra-machista. Evidências não faltariam: as personagens mulheres se dividem entre femme fatales picaretas ou bobas de carteirinha. Mas percebam melhor a empregada Isaura, com seu pragmatismo sistemático; e o movimento final de Anita, vencendo a submissão e se associando à esposa do chefe.
Fica evidente que, por vezes, até na Boca o girl power funcionava, apesar de eventuais disposições contrárias — as quais, com certeza, deixariam Betty Friedan com vontade de virar um cálice de café nas arriflex da turma do Soberano.
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Lista de historical feuilleton no subgênero crime fiction:
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