Quando o SBT atendia pela alcunha de TVS e exibia comerciais milagrosos, como o das Piscinas Tone e da Bola Porco do Mato, Xuxa Meneghel era uma tosca promessa, no meio de tantas. Reza a lenda que até Sílvio Santos, no alvorecer dos 80, a jogou para escanteio, preferindo contratar Sérgio Mallandro.
Vida que segue, Xuxa e Mallandro depois formariam dupla em Lua de Cristal (1990). Mas aí já haviam passado para uma nova década, gloriosa, que apenas consolidou o corso de crianças, velhos e criaturas alucinadas, fãs de Meneghel. Capa da revista Status, namorada de Pelé, coadjuvante escolhida por Walter Hugo Khouri em Amor Estranho Amor (1982) — o “proibidão” do cinema brasileiro —, a suposta adoradora de Lúcifer experimentou em dez anos uma intensa virada profissional.
Desabrochou, floresceu. Encontrou Marlene Mattos, empresária maranhense que tosou-lhe algumas liberdades, ensinou-lhe outras, torneou o corpo exuberante e formatou-a como uma boneca, objeto de consumo. Poucos poderiam compreender como a jovem estrela de Fuscão Preto (1983) — ao lado do cantor Almir Rogério — se consagraria em arquétipo da moralidade ecologicamente correta dos anos 80 e 90. Mulher (suburbana, como ela reitera), de beleza europeia e incrivelmente infantilizada para a idade.
A chegada das vassalas Paquitas (que renderam histórias hilárias de maus-tratos às crianças) juntou uma outra camada ao mito. Afinal, se não podíamos ser Xuxa, que tal pelo menos Paquita? O fato é que Maria da Graça Meneghel desbancou a Turma do Balão Mágico, colocou um speed mercadológico na água do universo infantojuvenil e cruzou fronteiras. Encantou Adolpho Bloch na TV Manchete, migrou para a Globo, envolveu-se com Ayrton Senna e, num tour pela América Latina, exerceu o colorido para Carlos Menem e Marcelo Tinelli (o galã da Telefe argentina).
No Xou da Xuxa a apresentadora saía toda manhã de uma nave espacial rosa e ia ter com dois bichos, animadores de auditório: Dengue e Praga. Curiosamente, quando decide recomeçar sua trajetória no cinema brasileiro, abandona os colegas de palco. Vejam que o caso é grave, praticamente uma profissão de fé. Como se, imitando Zé Bonitinho, dissesse “câmeras, close”, foco em mim. Apenas em mim.
E é sozinha que ela aparece em Super Xuxa Contra Baixo Astral. Centro e estrela de tudo, reiniciando do zero, aproveitando o banho de loja que sofreu ao chegar à televisão. Vestida, ma non troppo. As belas pernocas saltavam longilíneas do shortinho branco. Pelas conversas dos tempos de escola (e que me divertem até hoje, com amigos ora barbados), posso colocar a mão sobre o Guia 1989 de Vídeos e jurar: nem todos os meninos a viam como uma santa intocável. Digamos que ela foi um “rito de passagem”, para muitos.
Nesta nova fase cinematográfica, o enredo de Super Xuxa Contra Baixo Astral não poderia ser melhor. Um sururu ambientalista, com a colaboração de Antonio Calmon (completando metamorfose que o abduziu do cínico policial brasileiro para o pop deslavado de Menino do Rio [1982] e Armação Ilimitada [1985–1988]). Traz ainda um aspecto “musical”, que deve bastante a Lael Rodrigues, o homem que, qual Busby Berkeley, dirigiu Bete Balanço (1984) entre ruidosas coreografias, cheias de mullets e ombreiras. Paulo Massadas e Michael Sullivan ficam por trás das canções que reforçam a “tese” da história.
Em resumo, o seguinte: a moça é pureza, a moça é amor. Xuxa conta uma fábula que se enrola toda. Jabás explícitos de grandes marcas — os conglomerados macroeconômicos da geopolítica ocidental —, o capitalismo que ela própria critica (“Tudo é dinheiro! Muito lucro!”) enquanto espeta uma bonequinha com a mesma roupa e cara da apresentadora, algo para lá de esquizofrênico. O discurso desafia a prática, que desalmada.
Caminhando pelo bosque onírico, a guria encarna uma seguidora de Freud. A tradução perfeita de A Interpretação dos Sonhos, livro polêmico que chocou gerações: “O que eu não sei, lá vou saber./ Vem sonho, vem/ vem me responder”. Pena que não encontre o “Homem do Ratos” ou “Anna O.” dando sopa, para aterrorizá-la numa interminável psicanálise.
A esta altura, o cãozinho Xuxo apareceu em versão pelúcia, com voz estranha e afeminada. É a gota d'água para os estudiosos do tema, que geralmente o associam ao ocultismo, colocando-o como peça-chave na trajetória de riqueza e sucesso de Meneghel. Sem adentrar nessas altíssimas especulações filosóficas, a Xuxa do filme combate a burocracia, o alvo número 1 de babyboomers como Calmon, que nasceram inconformistas e se acalmaram com o tempo. Também luta pela natureza com os brinquedos Lango Langos (sabe-se lá por quê) e associa pichações à violência (o grafitismo ainda não era moda).
O vilão Baixo Astral (Guilherme Karan) habita o mais escuro esgoto. Com lágrimas nos olhos, a emoção toma conta e lembramos que por lá andava o jacaré Alligator [1980], a mais querida mutação nuclear que já se teve notícia e que celebrizou os domingos, após o Show de Calouros do canal de Silvio Santos. Apesar de não encontrar o amigo selvagem, Baixo Astral faz de tudo para achincalhar a alegria da loira que (é claro) atende pelo “alto astral” da humanidade. Rafa (Jonas Torres) até que ajuda, meio sem querer, pois é rebelde, do tipo que desobedece os pais. Muito baixo astral.
Karan faria sucesso na TV Pirata [1988–1992], Jonas Torres era do clube da Armação Ilimitada. Xuxa usou esses ganchos e ainda embarcou em outros, como Os Trapalhões (vide, por exemplo, A Princesa Xuxa e os Trapalhões, 1989). Nos idos de 2001, envolvida com a filha Sasha e dando um slow motion nos pulos pelo palco, Xuxa assistiria à nave rosa arder em chamas. A destruição do papel crepom, do celofane, as paredes caindo no estúdio, a fumaça quase matando as crianças que estavam por perto. Choque de realidade. Não deixa de ser a concretização de um pesadelo dos meninos e meninas, a fantasia da mãe boa que se evanesce num sopro e os coloca, súbito, no inferno.
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