quinta-feira, 28 de março de 2024

Boemia realista

Wood & Stock:
 Sexo, Orégano e Rock'n'Roll
 
(farsa,
BRA, 2006),
de Otto Guerra.
 


por Paulo Ayres

Rita Lee fazendo a voz da Rê Bardosa. Essa é uma das ideias primorosas dos realizadores de Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll. Como se o espírito de um movimento encontrasse a vocalização compatível, unindo duas referências com certa proximidade, mas que expressam uma tendência cultural em âmbitos e maneiras distintas. Tom Zé, outro tropicalista, participa da animação farsesca num desdobramento psicodélico como a voz da consciência libertária. E a voz da consciência libertária, no caso, é o Raul Seixas, visto num copo de bebida e na pia do banheiro.

Um retrato do anticapitalismo romântico de esquerda — é sobre isso o filme de Otto Guerra e é sobre isso a maior parte das personagens criadas por Angeli. No caso da família nuclear de Wood, mais o círculo próximo que inclui o seu grande amigo Stock, o humor está em ver bichos-grilos vivendo na meia-idade e se adaptando ao cotidiano urbano da sociedade burguesa — ou seja, fora da comunidade alternativa cultivada na juventude, mas mantendo certos princípios de sua visão de mundo utópica, na medida do possível. Estão expostos ao ridículo, mas não há um ar de superioridade no universo de Angeli. A sensibilidade do grande artista, nesse tratamento, é se aproximar — até demais — desse ambiente lúmpen, dessas visões de mundo, fazendo com que suas contradições sejam bem refletidas na ficção. E aí se supõe que o próprio Angeli está ou esteve inserido, em algum grau, nessa tradição de rebeldia. Ele surge como cartunista depois da contracultura dos anos sessenta e meados dos anos setenta.
 
Na escolha de um punhado de personagens em torno da família de Wood, o roteiro salienta a diversidade do anticapitalismo romântico. A satirização da religiosidade esotérica mostra que, às vezes, a classificação como esquerda pode se diluir no amplo leque irracionalista: a esposa de Wood e astróloga caseira, Lady Jane, se une — como discípula e através do sexo tântrico — com o guru Rhalah Rikota. Em outras expressões, por outro lado, “esquerda”, como substantivo  moral e político, vem sobrecarregada: Meia Oito e Nanico, a dupla de ultrarrevolucionários. Os dois comunistas não são ligados a um partido leninista e fetichizam a luta armada. Tirando alguma exceção, como a que ocorre no final do filme, os discursos são apenas a demonstração retórica de um purismo sectário. Em Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll, os dois revolucionários de boteco se tornam produtores da banda de garagem da dupla protagonista. Com a criação da banda Chiqueiro Elétrico, cujo vocalista é um porco grunhindo, essa sátira realista também alfineta o niilismo artístico.

A farsa, também conhecida como comédia pastelão, é o gênero ficcional mais flexível, permitindo um alto grau de abstração e experimentação. Deste modo, o fato de Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll ser um desenho “mal” animado não tem tanto peso como teria em outros contextos. Sua aparência de trabalho artesanal até casa bem com a referência à fonte de tiras de quadrinhos e com a temática underground. Cenário pouco movimentado de sátira B, mas riquíssimo nos detalhes que fazem a significação do que está sendo contado. Os traços de Angeli, que Guerra e sua equipe transportaram para a tela, trazem uma atenção apurada no espaço como local de convivência cotidiana. Vide o banheiro imundo que é usado como cômodo de fumar maconha: um acúmulo de coisas que chama tanto a atenção do espectador quanto as figuras que vivem ali. Há um olho nos acontecimentos, nos diálogos, e outro no ambiente que traduz o clima da contraditoriedade apresentada e não causa espanto para a maioria das personagens. Bem, há um estranhamento do espaço nos momentos em que a Rê Bordosa acorda de ressaca em algum lugar desconhecido e tenta lembrar o que ocorreu. Ela que, aliás, tem uma participação meio fantasmagórica, representando a postura anarco-individualista e, em certa medida, a postura existencialista.

Entre hippies e punks, entre o flower power e o foquismo (fetiche da guerrilha), o descontentamento com o mundo capitalista se apresenta de diversas maneiras e o que une todas essas tribos é algum tipo de sectarismo. Na configuração boêmia, até mesmo a bandeira avançada e legítima do amor livre fica comprometida. A tendência poliamorosa se apresenta em versões escapistas, como a anarquia relacional feita pela alcoólatra Rê Bordosa — sua crise “existencial” é sublinhada como crise psíquica e ela, ironicamente, absorve um psiquiatra freudiano para seu mundo. Na farsa física de Guerra, ademais, há também a revolta que nasce no interior desse tipo de revolta. Overall, o filho de Wood, representa a discordância dentro do estilo de vida destoante. De algum modo, não se trata simplesmente de virar apologista do sistema, mas de enxergar as incoerências do que se apresenta como método de superar esse sistema. Sobre isso, os próprios nomes de personagens fazem referências históricas interessantes: além do Festival de Woodstock, há a referência ao Maio de 68, quando ocorre o famoso fogo de palha da não-revolução. Os anos de 1968 e 1969 são emblemáticos para os românticos de esquerda.

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