quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Máscara realista

 Eyes Wide Shut

(tríler,
USA/UK, 1999),
de Stanley Kubrick.
 


= = =
por Bernardo Oliveira
Contracampo/1999

I. Uma escolha oportuna e tediosa

Como todo grande cineasta, Kubrick gostava muito de escolher e, sobretudo, gostava do ato de escolher. Isto significa criar um ritmo que nós, meros espectadores, simplesmente não concebemos, isto é, não entendemos como pôde vir ao mundo. Surpresa, mas, antes, estranhamento. É óbvio que a escolha desta vez passou dos limites. EWS é um filme que peca pelo tema. Ora, quem já ouviu a estória dos planos de Kubrick para filmar um x-rated? Ou me precipito com este jargão específico, devendo optar pelo simples pornô? EWS não é o pornô que os afobados cantaram, mas ninguém pode negar: todo mundo entendeu, não o sentido (como de hábito, vago), mas as sensações que atormentaram Bill naquela noite. Traição, desejo, medo. Ok, isso não importa, pois de fato o sexo nesta medida, torna-se perigoso... como tema. Kubrick acerta no labirinto nos fazendo passear por sentimentos bastante habituais. No entanto, esta escolha — uma bela escolha — carece de sentido para mim e para os muitos brasileiros que foram ver EWS. Deste modo, o veredicto: filme 10, com defeitos geopolíticos.

A possibilidade de adequarmos tal escolha às nossas concepções são remotas. Rimos do divórcio e nos deliciamos com o adultério, embora muita gente afirme que não. E isto, definitivamente, faz com que nossos olhos (conectados ao nosso cérebro) vejam um filme bem diferente do que veem os disseminadores da polêmica, nossos irmãos gringos. Rimos da Madonna, de Hugh Grant e Divine Brown, de Bill and Monica, enquanto eles tropeçam em obstáculos morais, em meio àquele autodesenvolvimento sustentado. Bill recusando uma caixa de uísque 25 anos e Alice loosing the line com a maconha são cenas risíveis. Mas e daí? A crítica não entendeu que o moralismo contido nos atos de Bill são caracterizações de Kubrick. O filme não deixa claro nenhum valor moral “correto”. Coloca-se um problema, causa-se um constrangimento, suscita-se um medo. EWS deixa um rombo no cérebro. Um rombo semelhante ao monolito de 2001 [1968] .

Com 2001: A Space Odissey, Stanley Kubrick criou um aparato tecnológico que, na melhor das hipóteses, serve de pano de fundo para a colocação de um problema. Concordo com meu caríssimo Alfredo Rubinato: Kubrick é da mesma estirpe de Dreyer, Chaplin, Stroheim, isto é, cineastas-filósofos, criadores do que Bazin batizou de “paisagens espirituais”. Admito esta hipótese porque seus filmes sempre nos colocam numa posição desconfortável. Como se o germe do problema fosse disseminado, não sua solução. O mesmo ocorre com EWS, só que com um tema perigoso e... enfadonho. Incomoda por sua insolubilidade, mas também por sua banalidade atávica.

Mas por que este filme é nota 9, nota 10? Bill entedia, Alice nem tanto. Talvez o maior barato é o alto espetáculo estético mesclado com um baixo nível de interpretação. Um problema sexual banal que recorre a um teatro de sombras, um festival de máscaras, que precisa borrar as fronteiras entre o tesão e o medo, que nos deixa em pânico a ponto de não lembrarmos de sexo. É bem verdade que há umas concessões meio patéticas — como aqueles flashes com o marinheiro, aquela “voz da consciência”. Não compromete. Justamente porque não há o problema do moralismo, porque o derradeiro “forever” redime, ou melhor, reabre a questão em plena cena final. Quando achamos (achamos mesmo?) que tudo vai ficar bem, prontos para profanar o túmulo... o filme nos recoloca o problema.

Mas que problema é esse? Desta vez o filósofo quis falar com a consciência, mas espreitando-lhe. Porque os psicologismos seriam brutais: nem chegaríamos à metade do filme. O que está sublinhado em EWS não é uma crise conjugal, nem uma crise do sujeito (de resto, uma crise filosófica), nem uma má consciência pela traição. Mas uma viagem caótica pelo cotidiano, uma exegese do tédio, uma prefiguração do que seria a verdadeira última obra de Kubrick. Esta verdade seria expressa em inúmeras e curtas frases de efeito sobre um papel branco. Uma crise de enunciados, por assim dizer. Toda a obra de Kubrick é uma escolha, já dissemos. Ele escolheu tratar do mundo atual, não obstante, as últimas cento e cinquenta velinhas do mesmo. E é por isso que enunciar é um problema: não há moralismo no filme porque não há moral. Quando acreditamos em poucas frases e as fazemos guia de nossos atos, produzimos moral. A filmografia de Kubrick delata a crise dos enunciados, formais ou informais, de nosso tempo.

Crise de enunciados: eu te amo ou eu quero te foder?

EWS é um detetor, sai da tela para pescar nossos comentários. É um contra-filme, ou há alguma suspeita? O grande cínico, não o faria para nos dar uma contra-projeção, para nos ver acusando-o de moralista? Ele nos vê. Nós nos enganamos. Se Jabor pôde “encenar” a morte de Kubrick, via jornal O Globo, porque não encenarmos sua grande ressurreição:
Kubrick não dispensou a coroa de espinhos e as chagas. O manto sangrava groselha, mas os apóstolos choraram porque não perceberam. Sem barba (alguns acharam estranho) ele ascendeu do mausoléu ainda fechado causando um estranhamento geral. "Como ele pôde?" perguntava Viegas; c’est ne pas possible!! suspirou Gardnier; tudo efeito especial, rosnava Rubinato. Eu (Oliveira) também não acreditei: chamei de Hollywood, de novela mexicana e lhe perguntei se também queria o cachê do Jabor. Ele docemente balançou a cabeça, negando, e disse: “Não é necessário. Aqui quem paga a bebida é o Nelson Cavaquinho”.
Se há moral que transcenda os limites estéticos de uma obra de arte — e há — não está em Kubrick. Se há filme que coloca problemas, que pensa o cinema, que faz com que a pleiboizada grite “fora! isso não é filme!”, isto é EWS. Se há testamento, só pode ser na cabeça de pseudocrítico de cinema. Não há testamento, não há desafio à crítica.

Desafio à reflexão: último filme de Stanley Kubrick, uma galáxia pra toda vida, dirigida por Barthelemy Amengual com roteiro paralelo de toda crítica mundial: um contra-filme. Antes comentário e apreciação do que puro diletantismo.

II. O suspense da consciência

Muito se esperou por EWS, por diversos motivos: as promessas de sacanagem ilimitada, de uma obra-prima monumental, de um testamento à altura da obra do mestre etc. Isto foi ruim porque dissolveu o filme num mar de suposições que mais pareciam e parecem fofoca de jornal. EWS é um filme autêntico, isto é, deve ser avaliado longe dessas polêmicas. De mais a mais, este papo de testamento é um contrassenso. Ou Kubrick estava certo que ia morrer?

Antes, ele ia buscar partículas de relações de poder na guerra, no desconhecido, no pentágono... agora resolveu montar um labirinto que, se pudéssemos desenhar, seria uma espécie de mapa da consciência burguesa. Mas também não é exatamente um mapa, por que mapa supõe lugares definidos, bem marcados. Kubrick nos mostra o mapa, mas ele muda diversas vezes. São os movimentos de Bill, ao longo do filme. Como se a todo momento, filigranas de psicologia redefinissem o desenho, permanecendo o significado, isto é, antes o movimento que o desenho. Os desenhos nos mostram os detalhes que montam o arquétipo atormentado de Bill. Revelam um ser normal, cuja normalidade é afetada pelo mundo, como se Kubrick quisesse dizer: “suponham o normal e observem-no perante a dúvida”. Mas, acima do desenho, o fato de que se movimenta, revela a volatilidade desta consciência, e é disto que devemos tirar nosso riso. Aparentemente rígida demais, dogmática demais, moralista demais, a consciência de Bill sucumbe ao mundo, frente a uma crise. Este sucumbir não é um perder, mas, antes, um aderir. Uma metáfora do capitalismo?

A ideia parece partir deste ator-mentado Bill. Seu casamento, a filha do defunto, a prostituta, a seita sexual, cada detalhe, isto é, cada situação, cada cenário escolhido por Kubrick, pode ganhar um estatuto diferente no filme, mas representam a mesma coisa: convenções sociais e relações de poder que soterram Bill e o seu desejo. Não foi à toa que K escolheu Tom Cruise. Ele é a figura burguesa, bom-mocista e bastante americana que reage a uma sinceridade endêmica de sua esposa. A partir daí, o suspense da consciência: mais uma vez Kubrick deixa a moral de lado, pegando-a por trás e fazendo uma espécie de radiografia da culpa. O suspense é resultado do cinema de K mas também é um comentário sobre a culpa, na medida em que o suspense se resume em uma pergunta e a dilatação do tempo de espera da resposta: o tempo dilatado é o suspense. O tempo dilatado que entremeia as ações de Bill, tanto de recusa quanto de aceitação conduzem a este suspense da consciência que toma o filme a partir da sinceridade de Nicole Kidman. Mas, como apontamos no parágrafo acima, Bill não sabe, mas sua culpa é estuprada pelo mundo e redefinida por ele. Esta redefinição atinge um grau que desqualifica a culpa e a transforma. Esta culpa torna-se, por acaso, um desejo, ou um medo, ou uma excitação, um desejo adolescente por adrenalina, uma tristeza sincera. O suspense da consciência revela que Bill se perde no meio “do que é certo” e experimenta o mundo. Este suspense é: o que farei agora? Devo fazê-lo? Ou não?

Deste modo, K realiza dois movimentos, sem nunca enunciá-los, mas representando-os e, mais que isso, sugerindo-lhes: o primeiro movimento que radiografa a consciência de Bill e revela sua redoma moral e seu conflito — e o filme vive este suspense da consciência a partir do que podemos deduzir do moralismo de Bill; e o segundo movimento, subterrâneo, que engendra uma mapa móvel, um mapa de desenho animado, que é metáfora da vida burguesa, cujo princípio de inclusão/exclusão revela-se um jogo excitante, pautado por pequenos desafios e grandes dúvidas. Pouco a pouco, observamos o prazer com que Bill é jogado cinematograficamente no mundo: o tempo é prenhe de experiências justamente para nos fazer ver este último movimento. E, aterrorizados, constatamos que K pinta este jogo psicológico sem dar a menor indicação de que Bill tem consciência dele. Assim, o que vemos é também uma ontologia da consciência burguesa, da qual K se vale pelo caráter histriônico, e que os comentários rasteiros, as fofocas, não deixaram aparecer.

Basicamente, EWS deixa explícito um movimento, mas sem torná-lo circular. Bill não passa pela experiência incólume. Ao término do filme, ela o transforma. EWS seria um filme moralista se àquele derradeiro forever, Nicole respondesse melifluamente: ok, forever. Neste caso, todas as experiências daquela noite seriam mera aventura classe A, pura adrenalina cocaínica yuppie e um monte de outras redundâncias que podemos ver com maior nitidez em Oliver Stone ou em algum autor do gênero. K não fecha o jogo e introduz um enigma perturbador: fuck! Nicole propõe uma solução que é um rombo do tamanho do monolito de 2001: A Space Odissey.

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